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Acordes do Círio, outubro de 2017 (Foto: Débora Flor) |
Partiu para o outro plano Mestre Vieira, criador da guitarrada paraense. Lutando contra um câncer desde 2016, ele apresentou melhoras no segundo semestre do ano passado e chegou a realizar shows, além de participar e ser homenageado em Barcarena no seu aniversário de 83 anos. Mas em novembro em complicações de uma anemia aguda seu quadro foi agravando e ele voltou a sentir muitas dores. Vinha recebendo cuidado médicos em casa e nesta quinta feira, 1º, pela manhã, foi internado às pressas em Barcarena, em leito na UPA, na Vila dos Cabanos. Agora pela manhã não resistiu.
Nós todos, que compartilhamos momentos de alegria com ele agora dividimos também a dor de sua partida, mas sabendo que agora ele descansou. O velório será em Barcarena, na igreja Matriz na frente da cidade, e o sepultamento amanhã pela manhã. Ele parte mas sua memória e obra continuarão vivas.
Foram dez anos de convivência e muito trabalho. Mestre Vieira foi e continuará sendo um guitarrista amado e admirado em todo o mundo. Ligado em música, desde criança, foi muito jovem que ele começou a animar as festas de sua cidade tocando choro e outros ritmos, munido de bandolim, cavaquinho ou violão, e foi só alguns anos depois que ele se apaixonou pela guitarra. Viu num filme, indo ao Cinema Universal, no largo de São João, na Cidade Velha, em Belém.
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Coisa Maravilha (Foto: Renato Reis) |
Vieira contou essa história em nosso primeiro encontro, em 2008, me incitando a ideia de levar essa história dele ao cinema, onde supostamente tudo tenha começado. Porque depois daquele dia ele não sossegou até ganhar uma guitarra, que chegou desmontada, vinda da Alemanha, num navio da Marinha Mercante. Montou não só a guitarra como um amplificador para dar voz ao instrumento. E a partir daí tirou dela o som que ficaria conhecido como guitarrada. Executando como ninguém o instrumento, inspirado pelo gosto pelo choro e a prática do bandolim, ele acabou criando um estilo único de guitarra brasileira.
Aquele encontro acontecia logo após a primeira explosão da guitarrada no país, que veio com outro projeto, Os Mestres da Guitarrada. E a ideia era dar continuidade em sua carreira. Produzir um documentário, DVD e site foi a ideia inicial que se estendeu a um trabalho de salvaguarda e difusão da obra de Mestre Vieira, dando visibilidade as suas fases musicais, revelando e retratando o homem, o músico e o mito que ele acabou se tornando, ao criar um ritmo na Amazônia, morando na beira do rio e que se propagou mundo afora.
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Coisa Maravilha, com Mestre Vieira Os Dinâmicos, 2011
Foto: Renato Reis
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Entrevistando Os Dinâmicos, soubemos que, como ninguém sabia direito o que era uma guitarra, na cidade, naquela época, o chamavam de Vieira e Seu Violão Dinâmico. Olha de onde veio o nome de seu segundo grupo, antes de se tornar Vieira e Seu Conjunto, batizado pela Gravadora Continental, pela qual ele gravou e lançou o primeiro LP Lambada das Quebradas, em 1979.
Dando sequência ao projeto de ir em busca de suas histórias, desde os tempos dos LPs, até o momento atual, desenvolvemos entre 2016 e 2017, a série de animação “Os Dinamicos”, que ficou pronta e deve ganhar as TV Públicas e Culturais em 2018. O filme rodado em 2011, porém, ainda não foi lançado. Este ano teve sua edição mais uma vez interrompida. Não temos nova previsão.
Nos 50 anos de guitarrada
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50 Anos de Guitarrada no Theatro da Paz (Foto: Renato Chalú) |
Ficam muitas lembranças, com boas risadas e muita música. Os shows do projeto “50 Anos de Guitarrada”, em 2012, foram realizados no Theatro da Paz, que recebia pela primeira vez a guitarrada. E que quase veio abaixo. Lotado, no primeiro dia um público que ficara do lado de fora, arrombou a festa e acessou a sala de espetáculos. Como mandar todos embora? Foram dias intensos que resultaram em duas noites de muita emoção no palco, e que reuniu junto ao mestre, vários convidados, todos especiais e imbuídos da homenagem a Vieira.
Gang do Eletro, Lia Sophia, Pio Lobato, Gaby Amarantos, Os Dinâmicos, Luiz Pardal, Sebastião Tapajós, Paulinho Moura, Trio Manari, Mestre Curica, Felipe Cordeiro, Manoel Cordeiro, Fernando Catatau, Iva Rothe, Vovô, Breno Oliveira, Otávio Gorayeb, Toninho Abenatar, além de sues filhos Waldecir, Wilson, Kim e seu neto Eric Vieira e um amigo já saudoso, Beto Marques.
Nos bastidores e direção do projeto, uma equipe implacável. Mais de 70 pessoas totalmente engajadas na missão. Enquanto tudo era preparado no palco, nos camarins, e montávamos som, luz, Mestre Vieira circulava pelo teatro se ocupando com várias entrevistas. Por telefone ele falou com jornalistas do Rio e de São Paulo. Ao lado dele, ia ouvindo histórias que ainda não conhecia, mesmo tendo feito já inúmeras entrevistas com ele. Percebemos que sua memória estava se avivando, sendo provocada e dando excelentes respostas. Ele estava então com 77 anos.
Félix Robatto, convidado para a direção musical, montou uma banda base também apaixonada, e que no segundo dia de apresentação levou todo o repertório que contemplou as fases instrumentais do nosso guitarreiro, dos anos 1970 até 2009, com músicas dos Mestres da Guitarrada e Guitarrada Magnética, o álbum mais recente até aquele momento.
No primeiro dia tivemos a honra de contar com Os Dinâmicos, grupo formado por Dejacir Magno, Idalgino Cabral, Luiz Poça e Lauro Honório, músicos que gravaram vários LPs de Vieira e Seu Conjunto, e que tinham se reconectado musicalmente em 2011, nas filmagens do documentário “Coisa Maravilha”.
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Ensaios para o Porto Musical, 2015 (Foto: Luciana Medeiros) |
O repertório com Os Dinâmicos trouxe as músicas cantadas de maior sucesso além de algumas pérolas como “Você voltou pra mim”, cantada por Lia Sophia e seu banjo, e “Esse Bode dá Bode “e “Eu vendi esse bode”, músicas do segundo e terceiro LPs, executadas pelo guitarrista Fernando Catatau, um dos convidados, que também arriscou cantar os refrões com Dejacir Magno.
Circulando com Os Dinâmicos
O reencontro de Vieira com os músicos de seu Conjunto gerou um primeiro show apresentado no Festival Se Rasgum, e depois uma circulação que chegou à Feira da Música de Fortaleza, em 2012. Mestre Vieira e Os Dinâmicos se apresentaram num palco gigante montado no Dragão do Mar, emocionando a plateia formada por muitos jovens curiosos, outros já cientes do tamanho da obra de Vieira, artistas, músicos e pessoas que tinham na memória a passagem deles pelo Ceará nos anos 1980, ou ouviram essas histórias de seus pais, tios ou avôs. Após 37 anos, eles estavam juntos, novamente, na terra dos bodes que inspiraram aquelas músicas.
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Coisa Maravilha (Foto: Renato Reis) |
Em 2013 realizamos o lançamento do DVD, em mais um mega show, cheio de convidados, entre eles o carioca Mig Martins, do Conjunto Noites do Norte. O músico veio do Rio especialmente para conhecer e tocar com Mestre Vieira. Tocou e se tornou um amigo da cena musical paraense, recebendo artistas daqui nas festas que realiza em sua cidade.
Em outubro de 2017, uma dessas festas contou com participação de Vieira. Estávamos nos preparando para ir ao Rio de Janeiro para realizar um show em Niterói, no evento Interculturalidades do projeto Territórios da Arte, realizado pela UFF e FUNARTE, quando o Conjunto Noites do Norte, que estava comemorando cinco anos, soube de nossa ida para aquele lado do país. Articulamos junto com Mig Martins esta participação que resultou em mais um momento emocionante.
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Na sede do Flumineste no RJ, em outubro de 2017
(Foto: Donatinho)
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Numa noite de lua cheia, Vieira foi recebido com muitos carinhos e cuidados na sede social do Fluminense.
O público jovem vibrou muito e Vieira sentadinho, tendo na retaguarda, além do Conjunto Noites do Norte, os filhos Waldecir (bateria) e Wilson Vieira (teclado), e ainda Abel Luiz, músico instrumentista que conhecemos no lançamento de Guitarreiro do Mundo, no Teatro de Arena da Caixa Cultural, também no Rio. Mig Martins articulou ainda a gravação de um clipe com participação do Mestre, nos altos de Santa Tereza, numa antiga mansão que hoje é um host estúdio de música. Ele me disse que está pronto, e em breve será lançado.
Em 2015, Mestre Vieira produziu o primeiro CD de Os Dinâmicos. Autor de 7 das dez faixas, ele também executou as guitarras solos no disco, que saiu de forma independente, gravado no estúdio de Hobson Poça, filho do tecladista do grupo, Luiz Poça, e depois recebeu o selo Na Music para prensagem e distribuição. Indicação de Vieira, que já havia feito o mesmo com seu disco “Guitarreiro do Mundo”, que lançamos no mesmo ano.
2015 foi um ano intenso
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Ensaios para lançamento do Guitarreiro do Mundo,
no Fábrika Stúdio (Foto: Luciana Medeiros)
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2015 foi um ano de muitos encontros, conversas e ensaios com Mestre Vieira e Seu Conjunto Musical, grupo montado especialmente para os lançamentos e circulação de Guitarreiro do Mundo. Primeira parada foi com o show case selecionado pelo Encontro Porto Musical, em Recife, e seguiu com o lançamento do novo álbum, Guitarreiro do Mundo, primeiro em Belém, e depois no Rio. Tudo no mês de junho. Na capital do Rio de Janeiro, a apresentação era contemplada pelo Programa Caixa Cultural. Foram três noites de apresentação, tendo na banda, com os filhos Wilson e Waldecir, além de André Macleuri (guitarra), Bruno Rabelo (baixo) e Carlos Canhão (percussão).
O cenário, assinado pela artista Roberta Carvalho, contou com projeção de recortes de imagens de capas de LPs, frames do mestre em movimento e muitas cores, que deram o tom certo à guitarrada, ritmo contagiante que inebriou a plateia. Três noites de casa cheia, além de um workshop ministrado pelo próprio mestre, com apoio de André e Bruno e ainda Pio Lobato, convidado para participar também do show de enceramento na capital carioca.
Últimos shows antes de adoecer
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Acordes do Círio (Foto: Débora Flor) |
No segundo semestre de 2015, em setembro, Mestre Vieira tocou no Festival do Abacaxi, em Barcarena e depois seguiu para Brasília e participou do Festival Ágora da Música Brasileira, no Teatro Plínio Marcos, da FUNARTE.
Embora tenhamos colocado uma cadeira para ele tocar sentadinho, num esforço movido ao carinho que ele sempre teve pelo seu público, levantou e fez o célebre passeio com sua guitarra, entre o público. Não havia nenhuma suspeita do câncer, mas nesta última viagem nos preocupou muito as dores de que ele se queixava, quando chegou em Belém.
Mesmo assim, Mestre Vieira seguiu direto do aeroporto, com seus filhos, para Barcarena, pegando ainda umas duas horas de estrada. Ele costumava sempre voltar de seus shows em Belém, mesmo que de madrugada, para dormir em sua terra. Isso sempre nos enlouqueceu, na produção, pois queríamos que ele ao menos pernoitasse na capital para voltar a Barcarena, pela manhã. Mas quem te disse!
Cinema, música, futebol e a descoberta do câncer
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Mestre Vieira no Forte do Castelo, em agosto de 2017
(Foto: Luciana Medeiros)
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O ano de 2016 começou e no dia 3 de janeiro fui até Barcarena para fazer as primeiras gravações do curta “Passe de Mestre - Histórias de Música e Futebol”, realizado pelo projeto Sonora Pará, da Cultura Rede de Comunicação. Curta de cinco minutos feito na base do cinema de guerrilha, refletido na qualidade de áudio que, uma pena, ficou aquém do projetado. O curta de 5’ de duração para a TV, teve versões de 30” e de 1’30” para as redes sociais.
O foco está na fala de Vieira em relação a suas grandes paixões. A música, que com cinco anos ele já demonstrava interesse e talento, tocando banjo, e o futebol. Vieira fundou vários times na sua cidade, um deles o Clube Atlético Barcarenense, em que colocou todos os filhos para jogar. Kim, Tuta e Waldir, além de Waldecir e Wilson, que ainda jogam e seguem à frente do clube.
Nas filmagens percebemos que ele havia emagrecido e as queixas das dores continuavam e o levaram a exames mais minuciosos, incluindo um para checar a próstata, que então revelou a doença. Foram momentos de tensão na família e inquietações até que todos os procedimentos foram resolvidos e foi realizada uma cirurgia.
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Arraial da Guitarrada (Foto: Luciana Medeiros) |
Quando o disco dos Dinâmicos foi lançado em 2016, Mestre Vieira já havia passado pela cirurgia e começado a tomar medicamentos quimioterápicos, sob a orientação dos médicos que o atenderam no Hospital Ophir Loyola. Foi o ano mais difícil em relação a aceitação do que estava acontecendo com ele, e ao mesmo tempo tínhamos que somar nas questões relacionadas ao tratamento que se iniciava.
O show intitulado “Arraial da Guitarrada” foi realizado em junho, no Teatro Margarida Schivasappa, no dia 24, em plena noite de São João. A apresentação foi especial, de homenagem e arrecadação de recursos para apoiar a estadia de Mestre Vieira, em Belém, durante um período em receberia aplicação de radioterapia, dando continuidade ao tratamento do câncer descoberto entre março e abril.
No palco, Os Dinâmicos mostraram músicas do disco novo e tocaram hits antigos recebendo como convidados, os guitarristas André Macleuri, Bruno Rabelo, Félix Robatto e Pio Lobato. Chimbinha levou uma banda para acompanhá-lo. Mestre Vieira não esteve fisicamente presente, mas gravou um vídeo de agradecimento ao público.
Em 2016, ele não fez mais shows e aos poucos foi deixando de tocar e precisou do apoio de uma cadeira de rodas para se locomover em distâncias maiores. Não voltou a pedalar sua bicicleta que até pouco tempo antes, ainda o levava pra cima e pra baixo pela cidade em que nasceu. Gostava de ir à feira e ao mercado, onde geralmente era recebido com aplausos.
Mestre se recupera e ainda faz shows em 2017
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Guitarreiro do Mundo no RJ (Foto: Rodrigo Romano) |
Depois de um ano em meio, em 2017 surgiu oportunidade de levá-lo a um tratamento natural, em paralelo ao que já vinha sendo feito. O uso de várias terapias para limpeza orgânica e exercícios fisioterápicos ajudaram a aliviar as dores e lhe trouxeram de volta seus movimentos nas dedos, mãos e pernas. Em agosto os resultados já foram positivos, ele voltou a dedilhar sua guitarra, andava bem melhor e ele retornou a Barcarena, onde seria dada continuidade aos cuidados, mas em casa.
Depois de um ano e meio sem tocar, ele fez shows no Rio e em Belém, e ainda na sua festa de aniversário dos 83 anos. Mestre Vieira demonstrava novamente os sinais de cansaço e de que voltara a sentir dores. Não estava feliz, obviamente, com a situação, inclusive de dependência em que ficou. Regrediu na recuperação e caiu numa depressão. Em seguida fez um quadro de anemia aguda, que foi sendo remediado com transfusões de sangue, até que seu estado foi piorando. Recebendo os cuidados em casa, desde então, nesta quinta-feira, 01 de fevereiro, ele foi hospitalizado num leito na UPA, Vila dos cabanos, em Barcarena.
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Com Igor Capela e Sebastião Tapajós, no Acordes do círio
(Foto: Debora Flor)
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Antes disso tudo, quando estivemos no Rio de Janeiro, uma grande felicidade para ele foi ter reencontrado sua irmã mais nova, Dona Esmeralda Vieira, seus sobrinhos e sobrinhas, além dos sobrinhos netos. Foram dias de grandes encontros. Mestre Vieira conviveu no hotel com artistas como Lia de Itamaracá e Cátia de França, tão mestras quanto ele. Momentos de emoção também para o público carioca. O Teatro do Centro de Artes da UFF, em Niterói, lotou. Vieira ao ser aplaudido de pé, também levantou de sua cadeira e como um rei saudou e vibrou com o público.
Mais emoção ele deu também no show realizado ao lado de Sebastião Tapajós, Solano e Mestre Laurentino, a última vez que o público de Belém teve oportunidade de vê-lo tocar. Na plateia do Teatro do Sesi, cada rosto ali demonstrava um que de espanto, admiração e felicidade em estar ali, ouvindo, ao vivo, quatro ícones da música amazônica. O show foi gravado e a intenção é finalizar um DVD.
Tudo isso faz parte de um plano de manter viva sua memória. As pesquisas sobre guitarrada não têm como existir sem começar por ele. O que esperamos é ter contribuído para o acesso e estudo de sua obra. A certeza é de que enquanto homem, pai, avô e artista, ele teve momentos de felicidade e satisfação, iluminação criativa e muita vontade de viver, por tudo isso, pelos filhos, por amar sua cidade, seu Pará. Não realizou tudo o que quis, mas fez aquilo que sempre gostou. Um salve a guitarrada, todas as reverências a Mestre Vieira!
Mais informações nos links:
Trailers no Youtube:
DVD 50 Anos de Guitarrada
Estadão