14.2.21

Transpassando lança zine e doc em sarau on-line

O sarau live apresenta o projeto “Um conto Reciclável: Escrevivências contidas em resíduos”, realizado em Fortaleza-CE, com apoio da Lei Aldir Blanc, tendo  como protagonistas catadores (as) de recicláveis. Os integrantes do Transpassando vão falar do processo de produção que resultou em mini doc e fanzine. Nesta segunda-feira, 15, às 18h, pelo YouTube do coletivo.

Quantas vezes você parou para pensar numa questão que é urgente, mas parece passar despercebida em nossos cotidianos. Quem está atento ao descarte consciente ou à coleta seletiva de lixo? Estima-se que o trabalho dos catadores de lixo seja responsável por 90% de tudo que é reciclado hoje no Brasil. Isso os faz verdadeiros(as) agentes da reciclagem, embora a sociedade não lhes ofereça o devido reconhecimento. 

Esse é o gatilho de "Um Conto Reciclável: Escrevivências contidas em resíduos". Nesta reportagem, eu converso com os integrantes do Coletivo Transpassando, Gabriel Oliveira Bastos, Gregório Souza (Greg) e Paulo W. Lima, além de bater um papo mais extenso com Luan Alex Medeiros Weyl, autor do texto “O Conto Achado no Lixo”, que inspirou o projeto. Escrito anos atrás e deixado, em um web site, propositalmente inacabado, ele agora foi finalizado com os sete catadores que participaram do projeto, que  passaram a ser co-autores do zine, assim como quatro deles são protagonistas do mini documentário que registrou entrevistas com eles e imagens cotidianas.  

O formato do zine aliado à contação de histórias, busca alcançar o público infantil inicialmente, mas, não se limitar a ele, daí a necessidade de registrar os processos produzindo o documentário.

"O material é fértil, criativo, vivo, e qualquer bom leitor se instigaria com o ele, nos possibilitando muitos desdobramentos, por exemplo, o zine também poderia se tornar uma peça de teatro, uma animação", diz Gabriel. 

"A transversalidade com a literatura é muito potente. A arte da linguagem nos possibilita tratar de múltiplos assuntos de formas diversas, explorando o uso de muitas narrativas, de símbolos, de estéticas, ela nos oferece aberturas outras de atuação" continua.  Para ele, a questão do descarte dos resíduos recicláveis é uma questão de extrema urgência. “Vivemos em um tempo de exaustão ambiental, de desequilíbrio exploratório, atuamos como parasitas na terra, e a cada ano a sobrecarga da terra aumenta, onde o planeta atinge o esgotamento de recursos naturais”, completa.

Já Greg, entrou no Coletivo Transpassando em meados de 2017, enquanto aluno do pré-vestibular. Tornou-se protagonista social no Transpassando, desenvolvendo um projeto de cineclubismo, no campus da UECE, com o intuito de fomentar o debate em torno das questões de gênero, raça e sexualidade através do cinema. 

No projeto,  ele está como arte-pesquisador mas que participou de todas as vivências. "Desde a fotografia, até às entrevistas com os recicladores (as). Confesso que apesar dos inúmeros embates pessoais por conta de opiniões diferentes sobre determinados assuntos, foi muito prazeroso fazer acontecer o minidoc, as entrevistas, o Zine e logo mais o sarau”, comenta.

Paulo W. Lima, Mestre em Filosofia pela UFC; Professor de Filosofia pela UECE; Produtor Cultural e arte-educador. Ele explica que o Transpassando é um coletivo cearense de combate à transfobia e demais preconceitos. 

“Somos um coletivo horizontal e autogerido. Enquanto coletivo, sou integrante como todes us outres, mas o coletivo possui ações diretas dentro dos espaços educacionais e profissionais. A principal delas é o programa de extensão Transpassando Uece, que temos dentro da Universidade Estadual do Ceará em parceria com o curso de Filosofia da instituição. Dentro desse programa temos vários projetos e um deles é o projeto de Produção Cultural. Eu atuo como coordenador pedagógico e professor neste projeto. 

Paulo W. Lima chama a atenção de que a relevância do projeto não é a de resolver o problema ambiental através da reciclagem, mas de denunciar os inúmeros problemas sociais que atravessam o problema ambiental.  “Não é saudável ao pensamento crítico e criativo separar a realidade em caixinhas isoladas. Discutir reciclagem através de uma abordagem da base da pirâmide, ou seja: dos catadores de resíduos, é discutir racismo, machismo, patriarcado, exploração do trabalho, subauternização das subjetividades. É fazer uma crítica ao sistema pela voz invisibilizada de um grupo social constantemente violentado. É fazer ecoar uma voz que muito pouco é ouvida e menos ainda é levada a sério”, conclui.

Entrevista: o lixo, seu descarte e os catadores

Para escrever "O Conto achado no Lixo", Luan se inspirou na obra “Conto de Natal”, de Charles Dickens, em que o protagonista Senhor Scrooge recebe a visita de três fantasmas, referentes ao Passado, Presente e Futuro, que vêm alertá-lo sobre seu modo de vida. 

Na escrita do artista, porém, a protagonista é uma criança que recebe a visita de fantasmas, no caso, quatro, que se mostram relacionados aos materiais recicláveis — Metal, Papel, Plástico e Vidro. As últimas personagens aparecem para advertir a criança quanto aos impactos do descarte incorreto de tais resíduos e, consequentemente, quanto à importância da Redução, Reutilização e Reciclagem. 

O artista circense, contador de histórias e poeta, que reside em Fortaleza há mais de dois anos. Já havíamos conversado algumas vezes, em Belém, ou mesmo por telefone, sobre suas inquietações acerca do descarte do lixo reciclável, tema que vem sendo recorrente e já possui um histórico na sua vida, como ele mesmo conta a seguir. 

Holofote Virtual:  O que te inspirou a trabalhar com os catadores de rua nesse projeto? 

Luan Alex: Foi uma sequência de fatores. Tive o privilégio de estudar e aprender sobre preservação ambiental desde criança, então a preocupação com o lixo sempre esteve presente, mas foi só em 2010, que eu tive a oportunidade de conhecer o movimento de cooperativas de catadores através de uma amiga, a Adriana Silva, que até hoje é ativista da área. 

Ela foi a primeira pessoa que me chamou atenção para o fato de que, mesmo que não exista coleta seletiva oficialmente por parte do governo, há pessoas, os(as) catadores(as) que passam de lixeira em lixeira a procura de materiais recicláveis para vender e garantir o sustento de suas famílias. Por isso é importante fazermos a coleta seletiva dentro de casa: separar orgânicos dos inorgânicos, não misturar lixo podre com material reciclável, etc, é o mínimo que podemos fazer. 

Em São Paulo, em 2012, fiz o minicurso “Casa Sustentável” do coletivo “Casa dos Hólons” onde conheci o conceito de “Lixo Zero” que é uma busca pela utopia de que nada é lixo, tudo pode ser aproveitado de alguma forma.

Foi quando conheci as “garrafas-tijolo” (Eco Bricks) e também o projeto “Pimp my carroça” do artista Mundano que me trouxe a informação de que 90% de tudo que é reciclado no Brasil é feito por causa do trabalho do(a) catador(a), desde então toda vez que vejo um(a) catador(a) faço questão de comunicar minha admiração por esse trabalho, tão fundamental, porém completamente (e hoje posso dizer: propositadamente) invisibilizado. 

Holofote Virtual: Tem muita gente que não age nem de longe dessa forma. Você é desses que fala mesmo para as pessoas sobre essa situação?

Luan Alex: Durante muito tempo eu fui o “chato da reciclagem”, por onde ia estava sempre falando sobre coleta seletiva, mas aí percebi que é muito difícil convencer as pessoas a mudarem seus hábitos. 

Geralmente o pessoal pensa que como o governo não faz, não adianta “perder tempo” separando seus próprios resíduos, “já que vai misturar tudo depois” e assim, por desleixo, muitos materiais recicláveis, acabam se misturando com restos de comida e/ou lixo de banheiro, tornando-se assim inadequados para o (a) catador (a) e poluindo o ambiente por sei lá, mais de 400 anos, a depender do material. 

Holofote Virtual: Como foi que você mergulhou nesse universo, buscando o ponto de vista dos próprios catadores?

Luan Alex: Em 2017, no Crato, tive a oportunidade de iniciar um projeto autônomo de uma Brinquedoteca Reciclada, ou seja, um acervo de brinquedos feitos com materiais que seriam considerados lixo na ONG Beatos, em companhia da artista argentina Dadu Flor. 

Nesse processo, visitei a cooperativa de reciclagem do Crato e, por força do acaso (ou destino), cheguei bem no dia de uma reunião entre as lideranças das cooperativas da região do Cariri. Não resisti e gravei vídeos meio de improviso mesmo com os(as) catadores(as) lá e daí a vontade de criar um projeto que envolvesse os(as) próprios(as) catadores(as), reconhecendo-os(as) como agentes fundamentais da reciclagem ficou mais forte. 

Ainda, na cidade do Crato, por mais uma obra do acaso (ou destino) também conheci uma artista-ativista brasiliense, a Deborah Paiva que escreveu um livro infantil, (Maricota: quero sombra, comida e água fresca) sobre a compostagem e foi o estalo que me faltava: ao invés de gastar saliva com adultos, deveria me focar em um trabalho de conscientização sobre reciclagem voltado para as crianças e assim surge o “Complete o ciclo” que é o pré-texto do projeto que estamos finalizando.

Além de tudo isso, os filmes: Estamira e Lixo Extraordinário, também foram de grande inspiração. Como diz o ativista Tião: "A reciclagem no Brasil não se deu pela educação ambiental do cidadão brasileiro, se deu pela desigualdade e exclusão social"  (https://youtu.be/2xDy2KVnU3c?t=1147). 

Holofote Virtual: O projeto está sendo desenvolvido dentro do coletivo Transpassando, como foi essa parceria e como vocês se dividiram no projeto? 

Luan Alex: Eu adentrei o coletivo pelo projeto do cursinho pré-vestibular, que é voltado (mas não restrito) a inserção de pessoas trans, travestis e não-binárias no ambiente universitário, justamente porque é uma população que sofre muito de evasão escolar. 

Podemos dizer que sou um caso desses. Em 2008, larguei a faculdade devido a sofrimento psicológico intenso. À época eu ainda não reconhecia-me como trans, mas a transfobia já me afetava e não concluí minha graduação em Geografia, por um semestre.  Dentro do projeto, propus uma estrutura de “Equipe de Arte-pesquisa” no intuito de que todes pudessem interferir nas diversas áreas do projeto, a depender de suas aptidões e conhecimento prévios, sempre compartilhando com os demais.

Holofote Virtual: Como tem sido essa experiência do auxílio Emergencial, você acredita que de fato esses editais abraçaram pessoas de todos os gêneros, cor e clero? Na sua opinião como está a inserção da comunidade trans nas políticas de cultura?

Luan Alex: É a primeira vez que tenho um projeto aprovado e vi muita gente também que nunca tinha conseguido, sendo contemplada. Acredito que houveram avanços, nas formas de inscrição (neste edital especificamente, o “Cidadania Cultura e Diversidade” era possível, inscrever-se com vídeo, ao invés de texto, por exemplo, o que possibilita que artistas analfabetos(as) possam concorrer. Porém, ainda falta muito para realmente proporcionar a inserção de pessoas trans. A pauta “tá na moda”, mas os atores na maioria das vezes não são trans, embora se interessem sobre o tema, falta reconhecer a comunidade trans, travesti e não-binária como sujeita, para além de objeto de pesquisa e inspiração. 

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