2017 foi um ano polêmico e esfumaçado. Cada um enxergou o mundo como lhe melhor coube. As pessoas discutiram e expuseram mais o que pensam, se dividiram em cores e deixaram cair a máscara (?). E também foi um ano de resistência da arte à censura e à intolerância. As questões do âmbito político e econômico causaram reflexos em todas as áreas e, na cultura, deflagrou discussões que geraram embates em todo o país.
Foram diversos os casos ocorridos e que deram um alerta. A intolerância está no ar. Diante do preconceito e da realidade política do país, o que já vinha esquentando os ânimos, explodiu no segundo semestre, quando a exposição Queermuseu – cartografias da diferença na arte brasileira, em cartaz no Santander Cultural de Porto Alegre, foi cancelada, acusada de zoofilia, pedofilia e blasfêmia. O fato gerou discussões acaloradas no país. Artistas se uniram para combater as limitações impostas às manifestações culturais.
Não só a arte e a cultura, mas dentro dessa realidade econômica e social, tudo que envolve os direitos de cidadania ficou ameaçado em 2017. Para analisar o atual contexto à luz da arte, o blog convidou o Doutor em Filosofia, Ernani Chaves, para um bate papo.
Na entrevista a seguir, o professor comenta o caso Queermuseu, analisa o meio cultural, cita alguns dos projetos e ações que observou neste ano em Belém do Pará e fala sobre políticas públicas para a cultura, que devem oferecer e ser acessadas para fomentar uma nova demanda de produção existente hoje no país. Para ele, as iniciativas independentes e a resistência cultural devem se manter no cenário e se fortalecer em 2018.
Professor da Universidade Federal do Pará, Ernani realizou estágios de pesquisa no exterior na Alemanha e na França. Possui pós-doutorados na Universidade Técnica de Berlim (1998) e na Universidade de Weimar (2003). Foi pesquisador Associado na Universidade Técnica de Berlim (janeiro e fevereiro de 2013), pesquisador sênior na École Normale Superieure de Paris, de março a junho de 2015.
Autor de livros e vários artigos nacionais e internacionais, publicou recentemente, pela Editora Autêntica, uma tradução de textos de Freud sobre Estética. Entre algumas de suas ações na cidade, registramos no blog o Ciclo "Afetos Obscuros", e seus debates realizados no Café Filosófico da Casa do Fauno.
Holofote Virtual: De modo geral, 2017 foi um ano muito complicado para a área cultural? Por que?
Ernani Chaves: Por vários motivos. Em geral, a área cultural depende bastante dos incentivos e patrocínios e de uma ação por parte do Estado. Num momento de crise econômica, é a primeira a ser considerada supérflua e quase desnecessária. Além disso, a cultura, como sempre, expressa e expõe as contradições, os embates, os confrontos, e diante da onda conservadora e reacionária que nos assola, é contra ela que os ataques se dirigem, antes de tudo, em especial por meio de formas de censura.
É um movimento paradoxal: do ponto de vista econômico, o âmbito da cultura aparece como desnecessário e quase inútil, porque gera pouco lucro e emprego; mas, de outro ponto de vista, a cultura é considerada como uma força prodigiosa, dotada de um poder de influencia enorme e que, portanto, precisa ser podada de seu aspecto crítico. Se pensarmos de uma maneira mais sóbria e menos exaltada, o balanço não deixa de ter um lado absolutamente positivo: a carência de recursos econômicos, não mata o espírito crítico, pelo contrário, ela instiga e provoca a criatividade!
Holofote Virtual: Em 2017, vimos muitas coisas, entre elas, uma exposição de arte ser chamada de subversiva, mas ao mesmo tempo temas como a violência contra a mulher, os direitos e a questão de gênero, a arte como expressão e criação também estiveram em evidência, você concorda?
Ernani Chaves: Como frisei acima, creio que todas as polêmicas e celeumas, que atingiram grandes nomes como Caetano Veloso, por exemplo, deixam uma grande lição: a de que as expressões artísticas são uma componente inalienável da ação humana, da vida humana e que possuem uma força prodigiosa.
Que a arte tenha se ocupado desses temas, só mostra que ela continua a ser o que sempre foi e será: um lugar no qual podemos expressar o mundo em que vivemos, de uma forma crítica, que a arte tem um componente ético e político, que a torna imprescindível e necessária para que possamos pensar e repensar as nossas ações.
Ernani Chaves |
Holofote Virtual: Em Belém, o que houve, o que que há?
Ernani Chaves: Eu não sou um frequentador habitual da cena cultural, artística de Belém. Virei um senhor de idade, um pouco preguiçoso, que adora ficar em casa, assistindo velhos filmes. Mas, é claro que procuro acompanhar os movimentos. Creio que existem focos e movimentos importantes, que acontecem no teatro, na fotografia e, principalmente, na música.
Embora, nesse último caso, a “coisa” é mais complexa, porque envolve um componente específico que é um desejo de afirmação identitária, que considero muito perigoso, ou seja, de que por meio de certas expressões musicais, a alma paraense estaria à mostra.
O resultado disso me parece muito problemático, uma vez que a música é a expressão cultural e artística mais facilmente capturável pelas fórmulas estandartizadas do sucesso. Daí a repetição infinita, que acontece nesse campo. Justamente por estar vinculada a formas de “expressão identitária”, que uma reportagem recente de Domink Giusti para um jornal da cidade provoca reações tão intensas.
Holofote Virtual: O que fica de reflexão e aprendizado da discussão sobre o fechamento da exposição Queermuseu?
Ernani Chaves: Duas coisas, no mínimo: em primeiro lugar, que precisamos ficar atentos a esses movimentos de caráter declaradamente conservador, autoritário e com alguns traços do fascismo, porque eles são capazes – e a história não nos deixa mentir -, com muita facilidade, de mobilizar as pessoas, ou seja, não podemos desconsiderar a força desses movimentos, que ganham muito espaço numa sociedade tradicional autoritária como a nossa, e as próximas eleições são o instrumento mais eficiente, no momento, para esse combate; em segundo lugar, que, repito, a arte continua mostrando sua potencia criativa e transformadora.
No Café Filosófico, Casa do Fauno |
Holofote Virtual: Em meio ao caos de 2017, o meio cultural reagiu, na sua opinião, como?
Ernani Chaves: No começo, timidamente, mas depois com muita força. Quando falo em “meio cultural”, falo também de nós, expectadores, “consumidores”. No campo acadêmico, por exemplo, reagimos de imediato às manifestações contra a presença de Judith Buttler no Brasil. O show de desagravo ao Movimento sem Terra e a Caetano Veloso há pouco em São Paulo, foi excelente, com milhares de pessoas, as mídias sociais foram um campo de batalha constante, no qual a resistência também se fez.
As censuras a peças teatrais e os ataques, de uma maneira geral, desferidos no campo da cultura ganharam repercussão internacional, o que nos enche de vergonha, é claro. Voltamos a ser um país de bárbaros! Dependendo da situação, do que estava em jogo, reagimos pouco ou muito, isolados ou em conjunto. Eu não descarto, de forma nenhuma, qualquer dessas manifestações de resistência, acho-as importantes e necessárias e vejo, com um certo otimismo, a continuidade delas no próximo ano, cujo panorama não é nada animador.
Holofote Virtual: Iniciativas independentes de artistas, produtores, sociedade civil organizada e comunidade acadêmica fizeram a diferença em vários momentos ao longo do ano. Destaque algumas iniciativas, ações e projetos, se houver.
Ernani Chaves: Perdoem-me se não lembrar de todos: o projeto “Circular”, as caminhadas pelo centro histórico organizadas por Michel Pinho (Historiador) e por Gorette Tavares (Geógrafa), os Cafés Filosóficos na “Casa do Fauno” (rs, auto-elogio), a popularização (no melhor sentido da palavra), do trabalho de um fotógrafo como Luiz Braga, cuja última exposição foi acompanhada de debates e visitas guiadas com estudantes que nunca tinham ido a um museu, pelas ações no campo do cinema, que ocorrem na Casa das Artes e nas programações alternativas do “Olympia” e do “Líbero Luxardo”, por formas de organização artística como o “Atelier do Porto”....
Holofote Virtual: Refletindo sobre isso tudo, na sua opinião, qual é a direção a ser tomada em 2018? Que rumos você acredita que terá a política cultural no país?
Ernani Chaves: O rumo não parecer ser dos melhores, mas acredito que há uma forte resistência e, melhor, que não está organizada da forma tradicional. Os movimentos de resistência no campo da cultura não podem, no andar da carruagem do mundo atual, agirem tomando como modelo os sindicatos ou os partidos políticos. Infelizmente, em Belém, afora a manutenção à fórceps de instituições como a Casa da Linguagem e a Casa das Artes, pouco se vê uma presença do Estado, no bom sentido da palavra, que seja interessante e criativa. Mas, o mais importante em 2018 é não jogar fora o voto!
Holofote Virtual: As iniciativas independentes devem se manter e fortalecer? Ou serão vencidas e engolidas pelo sistema?
Ernani Chaves: De forma alguma, se há um foco de resistência que se mantém e precisa ser mantido é esse, o das iniciativas independentes, embora essa “independência” deva ser colocada entre aspas. Isso porque, essas iniciativas são as que mais necessitam de apoio. Em época recente, quando havia muitos Editais, as iniciativas independentes, justamente por necessitarem de recursos, corriam sérios riscos de sucumbir a algumas fórmulas que presidiam os Editais, para serem contempladas. Mas, isso faz parte do jogo laborioso entre as forças da cultura e as instituições que nós mesmos construímos.
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