Eles chegam, montam uma roda e começam a tocar. Tudo bem simples. Aos poucos, um transeunte ou outro se aproxima, crianças, um turista acidental. Todos prestam atenção, alguns conhecem aquela música, outros não. As experiências com a cidade tem sido múltiplas para O Mercado do Choro, que na quarta-feira, dia 27 de dezembro, a partir das 16h, estará compartilhando mais uma vivência musical, na Félix Roque, rua histórica situada no bairro da Cidade Velha, em Belém do Pará.
O local escolhido está nas imediações da Praça do Carmo e do Mercado do Porto do Sal, onde eles já vêm atuando. Ali, estamos bem na origem da cidade.
A Félix Roque é uma rua estreita que corta a Siqueira Mendes, primeira rua de Santa Maria do Grão Pará, e vai dar num cais. A visão é belíssima e às 16h, a luz é perfeita para fotografar ouvindo chorinho. O repertório traz composições oriundas dos mercados, mais outras autorais, além de obras importantes da música instrumental brasileira e paraense - Adamor do Bandolim, Luiz Pardal, Sebastião Tapajós e Nego Nelson.
O blog bateu um super papo com Carla Cabral sobre a arte, direito à cultura e à cidade, sobre o lado mais envolvente do choro, pesquisa e a paixão por isso tudo nesses três anos de projeto e suas ações em espaços públicos. Além disso, ela nos dá dicas preciosas de onde e o que encontrar do gênero, ao vivo, na cidade.
Tudo começou de forma embrionária em 2013, quando uma nova geração de chorões em Belém decide sair às ruas para, literalmente, colocar o choro nas rodas, iniciando por lugares como Mercado Francisco Bolonha e Praça do Carmo, localizados na capital paraense. Vários outros músicos foram se unindo na intenção de tornar o movimento mais forte e percorrer outros espaços. No ano seguinte surge O Mercado do Choro.
O grupo é aberto aos que queiram participar e somar com arranjos coletivos, e as participações nas rodas são inúmeras em determinadas ocasiões, mas na linha de frente do projeto estão Carla Cabral (cavaquinho, composição, direção musical e direção geral); Diego Santos (violão 7 cordas, composição , direção musical e edição de partituras); Tiago Amaral (clarinete e composição); Bruno Miranda (percussão) e Gabriel Ventura (percussão).
Em 2016, com a premiação no edital Prêmio SEIVA de experimentação, pesquisa e difusão artística da Fundação Cultural do Pará, saiu o primeiro CD, lançado digitalmente, trazendo composições com registros e paisagens sonoras do Mercado de São Brás, Praça do Carmo, Mercado do Jurunas, Mercado Francisco Bolonha, Mercado do Porto do Sal e Feira do Açaí. Foi gravado no estúdio APCE Music, em Belém.
"Estamos nas principais plataformas digitais (Spotify; Deezer, Google play e Apple Music) e temos conseguido compartilhar bem o nosso trabalho. Estamos recebendo boas respostas. Estamos felizes e já planejamos um novo álbum pra 2018, agora com CD físico", diz Carla.
Este ano, entre outras conquistas estão a chegada do projeto a cidade Bragança, nordeste do estado do Pará, e nas rodas na comunidade do Porto do Sal, além da temporada em dois espaços da música instrumental paraense. Em 2018, também está nos planos levar o projeto a mais quatro espaços: Mercado da Pedreira, Feira da Água Branca, Mercado de Óbidos e Mercado do Guamá, gravar um novo videoclipe, editar partituras, lançar 7 faixas e realizar shows.
No Mercado do Jurunas |
Holofote Virtual: Desde que conheci o projeto, me chamou atenção a escolha de mercados e outros logradouros históricos ou ambientes de feira para o grupo se reunir. De onde partiu essa ideia?
Carla Cabral: O Mercado do Choro acende exatamente quando a gente, andando pela cidade, se pergunta porque que naquele espaço não poderia ter uma atividade artística e se pergunta também: será que essas pessoas conhecem choro? E nos questionamos: Qual o nosso papel enquanto ser humano, produtor de cultura?
Tem o fato do choro ser visto como música elitista e a gente querer discutir essa identidade, já que a origem do gênero é popular; tem o fato de a maioria dos trabalhadores dos mercados e boa parte dos frequentadores não terem contato com a música que a gente faz; tem uma vontade de tornar mais sensível o encontro no ato de fazer música; tem uma vontade imensa de viver a cidade, de esclarecer que se a gente não estiver nas ruas, vai ficar muito feio isso de se ater apenas àquele discurso de que a cidade é só violência.
Praça do Carmo |
Holofote Virtual: Qual seria a conexão mais direta entre o projeto, o choro em si e os espaços escolhidos para esse circuito de vocês? Costumam levantar informações sobre esses espaços, isso rende alguma nova composição?
Carla Cabral: Tudo isso e mais um pouco são pontos que alinham a nossa conexão nesse projeto. Ele não tá fechado, é um projeto que cada dia se pensa, se reflete e se alimenta muito de poder viver isso, é isso que nos rende novas composições: morar na cidade e andar por ela, conviver com os amigos e estabelecer novas maneiras de fazer nossa arte interagir, ser tocado pelos espaços e pelas pessoas, não apenas sentar e tocar.
A gente quer estabelecer esses novos laços, e procuramos, sim, saber antes dos espaços, entender a dinâmica e a história dos locais. Até porque a última coisa que queremos é incomodar. Pelo contrário, queremos alegria, compartilhamento, trocas saudáveis.
Mercado do Jurunas |
Holofote Virtual: Como vocês interagem com o espaço e público? A divulgação é feita na comunidade ou vocês simplesmente chegam e tocam?
Carla Cabral: A gente realmente gosta de andar pela cidade. Então, tudo que agente vê, já pensa: será que rola ali? Aí vem aquela porção de preocupações de logística e cuidado com o espaço e comunidade. Daí, em geral, quando fazemos a primeira roda, não divulgamos, pra podermos sentir como será a recepção, aquele primeiro contato. Depois vamos convidando os amigos, depois divulgamos e por aí vai. Também perguntamos o que as pessoas acham, porque tem que ser bom pra todo mundo. O espaço é de convivência e, no nosso entendimento, tem que ser harmônica.
Porto do Sal |
Holofote Virtual: Bacana os planos de se expandir a outros locais de Belém, as feiras são sempre um ótimo espaço. Mas como pretendem fazer isso? Há certa burocracia de ocupação nos espaços públicos, não é isso? Vocês têm enfrentado problemas nesse sentido?
Carla Cabral: Olha, até hoje a gente só teve uma questão. Quando começamos, lá em 2014, no Mercado Francisco Bolonha que faz parte do Complexo do Ver-o-peso, fomos recebidos com certos olhares preocupados. A guarda municipal ficava receosa da gente passar de 17h e sempre passávamos, mas entrávamos em acordo.
Depois de uns meses começamos a sair às 17h e ir pra Feira do Açaí, e lá é sem limite de hora e ainda tem um pôr-do-sol lindo, rsrsrs. Lembro que passamos uns meses sem ir ao Bolonha, quando voltamos muita gente perguntou por onde andávamos. Nossa! Essas pessoas não sabem o quanto foi importante pra gente aquela pergunta. Porque o alcance da música instrumental, a gente sabe, é menor. E saber que a gente tá passando isso, que nossa música altera a dinâmica daquela comunidade, assim como somos alterados pelo convívio com eles, é encorajador.
Um fato interessante é que o Bolonha só podia funcionar até às 17h, mas depois abriram um restaurante lá dentro e o horário passou a ser 21h. Mas, como não ficava nem um outro box aberto, não nos interessou permanecer após às 17h. Porque também é do nosso interesse fortalecer o comércio do próprio local e não de quem só se apropria. Pensamos que a nossa estada nesses espaços também deve levantar essas reflexões.
Então, assim, até hoje não tivemos grandes transtornos relacionados à burocracia. Até porque nossas rodas quase sempre são acústicas e com número médio de pessoas, o que fere menos a constituição (risos). A próxima roda, como você disse, vai ser em uma rua. É algo novo pra gente, vai ser um desafio. Esperamos fazer com todo o respeito e estamos pedindo isso intensamente.
Mercado do Porto do Sal |
Holofote Virtual: O chorinho é quase um mantra em que a gente se deixa viajar, sinto assim. Na tua opinião, porque esse gênero é tão envolvente?
Carla Cabral: Fico contente de saber que sentes assim o Choro. É uma boa definição. Acho que também sentimos dessa maneira. Entendendo que “mantra” é um condutor de bons fluídos pra mente, pro espirito, pro corpo. É bem isso mesmo.
É envolve justamente por isso, por ser uma música genuína no ato, é uma necessidade de ser feita, de ser tocada. Além de flertar com várias outras linguagens como o forró, o jazz; no Pará, o carimbó, a guitarrada. A transmissão é feita por paixão pelo gênero e pela cultura ao redor dele. Então, não vejo como ela não ser envolvente, porque é feito, sobretudo, com amor, despido de muitas outras razões que fazem muitas músicas serem datadas.
Mais Choro no Mercado do Sal. (Foto: Marcelo Lelis) |
Holofote Virtual: Movimento de choro. A tradição vai além de Belém? O choro é forte onde mais no Pará?
Carla Cabral: O movimento tem se intensificado. Com certeza, fruto da dedicação de toda a turma da Casa do Gilson, como Adamor do Bandolim, o Gilson, o Meninéa. E também do projeto Choro do Pará, onde temos o Paulinho Moura, incansável, na formação de novos músicos na área.
Esse projeto acontece na capital, mas tem desdobramentos pra interiores, além de receber músicos de bandas de outras cidades e trazer professores de outros estados para ministrar oficinas aqui, então, acaba agregando não apenas novos estudantes de choro da capital e do interior, mas também estudantes do Conservatório Carlos Gomes e da Escola de Música da Federal, muitos deles também advindos de cidades como Vigia, Cametá e Marapanim. Então, a linguagem tem se expandido. Além disso, Santarém, Mosqueiro, Marabá, Ilha do Marajó alimentam esse movimento, tem suas cenas independentes da capital. Seria bom reunir todo mundo, quem sabe...
No Ver-O-Peso |
Holofote Virtual: Vocês fazem parte de uma nova geração de músicos chorões na cidade, que estudaram música, dão aulas já e estão atuantes, gravando e fazendo shows. Quais são os novos espaços para o ensino e pesquisa do choro?
Carla Cabral: Fazemos parte de uma nova geração que já não é mais tão nova assim, né? (risos). A gente começou ali por 2004, de lá pra cá já tem mais uma turma que surgiu. O projeto Choro do Pará continua existindo, tem uma página no facebook pra acompanhar sobre as inscrições. Atualmente é o principal espaço para estudo do gênero. Porque, infelizmente, ainda é pequeno o estudo focalizado do choro nas nossas principais escolas de música do estado, já citadas aqui.
Na maior parte das instituições dessa natureza nos outros estados, há grupos de estudo, oficinas e ações, mas aqui ainda há uma carência. Até os trabalhos de graduação, mestrado e doutorado são poucos. Acho que os educadores de música ainda tem uma resistência muito grande em entender o choro como um gênero brasileiro extremamente rico e com os mais variados aspectos a serem estudados. Infelizmente, a academia ainda é hermética para o estudo da música popular brasileira, especialmente do choro.
Carla Cabral: Sim. O Gilson continua sendo a nossa casa, são 30 anos de história. Temos que respeitar e contribuir para aquele lugar continuar sendo a nossa natureza, o nosso quartel general como chamamos. No entanto, sabemos da importância de descentralizar. Penso que a nossa geração tem essa preocupação um pouco mais acentuada. Nós temos muita vontade de fazer o choro estar em outros ambientes, custe o que custar. Mas, é natural, sangue novo, temos mesmo que fazer por onde.
Não é fácil criar uma tradição, formar público, fazer a casa lotar, como começamos a fazer no Refúgio dos Amigos, na cidade velha. Ali, com a Dulci Cunha, com a Juçara Dantas e com o Kléber Benigno (Paturi), roemos ossos, mas com dois anos de trabalho, hoje as pessoas já tem onde ouvir choro aos sábados final da tarde. E temos onde tocar o que a gente gosta, composições novas, gente que vai pra nos ouvir e gente que queremos encontrar, compartilhar aquele momento.
Holofote Virtual: Onde mais ouvir O Mercado do Choro e outros grupos, ao vivo?
Carla Cabral: Agora o Mercado além das ruas, também está na Casa D’Noca (domingo, 13h) e no próprio Refúgio dos Amigos (19h). Nesses locais a gente encontrou uma possibilidade de aperfeiçoar nosso repertório autoral e criar um público, pra depois convocar para a nossa natureza, que é conduzir arte pela cidade.
Além da gente e desses lugares, o pessoal do Engole o Choro, Lobita, Choro de Fita, Choro no Reduto, Caxangá, entre outros, tem criado novas possibilidades pela cidade. Vejo música instrumental no Apoena, no Boiúna, Casa do Fauno, Ouriço. A galera tá com vontade e energia! O importante é aliar respeito e inspiração na geração anterior à vontade que temos de levar nosso choro pra outros lugares da cidade e do mundo.
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