Em três dias de espetáculo, quem esteve no Theatro da Paz neste final de semana, saiu de lá extasiado. O jornalista Ismael Machado assistiu no sábado a apresentação. Abaixo suas impressões, sobre a densa interpretação de Regina Braga, publicada originalmente na Revista Eletrônica O Grito, no site da UOL.
NESSE BAFO QUENTE VIREI OUTRA
A transformação da estrangeira Elizabeth Bishop, interpretada por Regina Braga,
diz muito sobre o Brasil e os brasileiros
Por Ismael Machado*
De Belém
Já sabendo estar contaminado pelo vírus da aids, o escritor
Caio Fernando Abreu acabou por reunir uns textos aparentemente sem ligação
entre si e lançou Estranhos Estrangeiros. Os anos 1990 corriam céleres. A ideia
de se sentir estrangeiro dentro do próprio corpo, ou do país, da comunidade,
grupo etc, sempre foi cara ao cinema e à literatura. Na música, em alguns
artistas, como Bob Dylan, por exemplo.
Foi o estranhamento a sensação inicial a
atingir a poeta americana Elizabeth Bishop, em 1951, quando aportou no
Brasil. A lufada de calor a pegou em cheio, como um bafo quente a avisar que
por esses trópicos não passaria incólume. Bishop não apenas sobreviveu como
metamorfoseou-se por completo em década e meia morando no Brasil.
Esse período, pouco cronologicamente, para alguns, resultou
em mais de uma vida para a escritora. No Rio de Janeiro passaria apenas 15
dias. Ironia do destino, pode-se pensar que cada dia corresponde a um ano, o
que justificaria os 15 anos em terras brasileiras. Elizabeth Bishop amou, ganhou,
perdeu, sofreu, espantou-se, se divertiu, odiou, resignou-se, entendeu e
mergulhou. O mergulho foi no mais assustador e profundo universo: o de si
próprio.
Vídeo oficial do espetáculo |
Tudo isso está inserido no monólogo Um Porto para
Elizabeth Bishop, que encerrou temporada curta em Belém, no Teatro da Paz.
Foram três noites, iniciadas na sexta-feira, 7 de março. A peça, baseada nesse
profundo hiato de tempo da vida de Elizabeth Bishop acabou por se tornar um
veículo ideal para a atriz Regina Braga, alçar um voo que poderia ser complicado,
denso demais ou até monótono. Denso sim, monótono não.
Rico em sutilezas o drama interpretado pela atriz faz dois
saltos. O primeiro é íntimo, interior, onde o público acompanha de perto a
transformação da escritora. Como pequena lagartixa querendo sair do casulo e se
transformar em borboleta, Bishop mergulha em uma natureza viva, verde, úmida,
quente que entranha nos poros dela e vai arrancando aos poucos camada por
camada de uma proteção arraigada no selo do desenvolvimento de países mais ‘civilizados’.
É o Brasil, onde na mesma frase, patrão se torna ‘filha’ e
‘senhora’, que vai sendo descortinado e comparado, examinado, percebido pelo
olhar agudo e espantado de Elizabeth Bishop. Como animal acuado, primeiro ela
tenta se defender para só depois deixar-se envolver pelo que recebe e encontra
no caminho.
É fascinante acompanhar essa trajetória da personagem na
interpretação de Regina Braga.
Sem maiores solavancos, ela conduz a plateia por
um caminho aparentemente cego, cheio de curvas, mas ao mesmo tempo límpido,
como a água com que ela lava os cabelos da amada Lota Macedo, a arquiteta e
urbanista que a ‘seduziu’, assim como o país fez com ela.
O outro passeio é por um Brasil otimista, que venceria a
primeira Copa do Mundo, que transitaria de Vargas a JK e depois desceria aos
porões de uma ditadura que, apesar disso, ainda assim não perderia o viço.
Bishop espanta-se com uma ‘revolução’ que surge e no dia seguinte as pessoas
mal se dão conta dela.
É um país que parece um tanto perdido visto de longe. Mas
que desperta, em alguns momentos certa nostalgia na plateia que ri das próprias
características que nos distinguem como povo a olhos não acostumados conosco. A
peça estreou em 2001 e já teve várias outras temporadas, inclusive fora do
país. A direção de José Possi Neto foi feita para dar vazão ao trabalho de
Regina Braga. E funciona. Em cena, Regina-Elizabeth sofre e goza. Ama e chora.
Ri e se desespera. Como estranha e estrangeira, se torna íntima e pessoal.
Ao final, talvez o retrato feito sobre nós mesmos, não seja
o melhor, mas é certamente caloroso. Entre o ritmo desorganizado que
imprimimos, um país onde, como dizia Caetano, tudo mal começa e já é ruína,
abraçamos também uma possibilidade de diálogo com um futuro que pode ser sim,
mais harmonioso. Aos olhos de uma poeta, isso pareceu possível.
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* Ismael Machado é jornalista e autor do livro Sujando os Sapatos- O Caminho
Diário da Reportagem (IAP). Venceu o prêmio Vladmir Herzog pela série “O Dossiê
Curió”, sobre Sebastião Rodrigues de Moura, o Major Curió, um dos nomes mais
relacionados à Guerrilha do Araguaia.
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