10.3.14

Mais sobre Um Porto Para Elizabeth Bishop

Em três dias de espetáculo, quem esteve no Theatro da Paz neste final de semana, saiu de lá extasiado. O jornalista Ismael Machado assistiu no sábado a apresentação. Abaixo suas impressões, sobre a densa interpretação de Regina Braga, publicada originalmente na Revista Eletrônica O Grito, no site da UOL.

NESSE BAFO QUENTE VIREI OUTRA

A transformação da estrangeira Elizabeth Bishop, interpretada por Regina Braga, diz muito sobre o Brasil e os brasileiros

Por Ismael Machado*
De Belém

Já sabendo estar contaminado pelo vírus da aids, o escritor Caio Fernando Abreu acabou por reunir uns textos aparentemente sem ligação entre si e lançou Estranhos Estrangeiros. Os anos 1990 corriam céleres. A ideia de se sentir estrangeiro dentro do próprio corpo, ou do país, da comunidade, grupo etc, sempre foi cara ao cinema e à literatura. Na música, em alguns artistas, como Bob Dylan, por exemplo. 

Foi o estranhamento a sensação inicial a atingir a poeta americana Elizabeth Bishop, em 1951, quando aportou no Brasil. A lufada de calor a pegou em cheio, como um bafo quente a avisar que por esses trópicos não passaria incólume. Bishop não apenas sobreviveu como metamorfoseou-se por completo em década e meia morando no Brasil.

Esse período, pouco cronologicamente, para alguns, resultou em mais de uma vida para a escritora. No Rio de Janeiro passaria apenas 15 dias. Ironia do destino, pode-se pensar que cada dia corresponde a um ano, o que justificaria os 15 anos em terras brasileiras. Elizabeth Bishop amou, ganhou, perdeu, sofreu, espantou-se, se divertiu, odiou, resignou-se, entendeu e mergulhou. O mergulho foi no mais assustador e profundo universo: o de si próprio.


Vídeo oficial do espetáculo

Tudo isso está inserido no monólogo Um Porto para Elizabeth Bishop, que encerrou temporada curta em Belém, no Teatro da Paz. Foram três noites, iniciadas na sexta-feira, 7 de março. A peça, baseada nesse profundo hiato de tempo da vida de Elizabeth Bishop acabou por se tornar um veículo ideal para a atriz Regina Braga, alçar um voo que poderia ser complicado, denso demais ou até monótono. Denso sim, monótono não.

Rico em sutilezas o drama interpretado pela atriz faz dois saltos. O primeiro é íntimo, interior, onde o público acompanha de perto a transformação da escritora. Como pequena lagartixa querendo sair do casulo e se transformar em borboleta, Bishop mergulha em uma natureza viva, verde, úmida, quente que entranha nos poros dela e vai arrancando aos poucos camada por camada de uma proteção arraigada no selo do desenvolvimento de países mais ‘civilizados’.

É o Brasil, onde na mesma frase, patrão se torna ‘filha’ e ‘senhora’, que vai sendo descortinado e comparado, examinado, percebido pelo olhar agudo e espantado de Elizabeth Bishop. Como animal acuado, primeiro ela tenta se defender para só depois deixar-se envolver pelo que recebe e encontra no caminho. 


É fascinante acompanhar essa trajetória da personagem na interpretação de Regina Braga. 

Sem maiores solavancos, ela conduz a plateia por um caminho aparentemente cego, cheio de curvas, mas ao mesmo tempo límpido, como a água com que ela lava os cabelos da amada Lota Macedo, a arquiteta e urbanista que a ‘seduziu’, assim como o país fez com ela.

O outro passeio é por um Brasil otimista, que venceria a primeira Copa do Mundo, que transitaria de Vargas a JK e depois desceria aos porões de uma ditadura que, apesar disso, ainda assim não perderia o viço. Bishop espanta-se com uma ‘revolução’ que surge e no dia seguinte as pessoas mal se dão conta dela.

É um país que parece um tanto perdido visto de longe. Mas que desperta, em alguns momentos certa nostalgia na plateia que ri das próprias características que nos distinguem como povo a olhos não acostumados conosco. A peça estreou em 2001 e já teve várias outras temporadas, inclusive fora do país. A direção de José Possi Neto foi feita para dar vazão ao trabalho de Regina Braga. E funciona. Em cena, Regina-Elizabeth sofre e goza. Ama e chora. Ri e se desespera. Como estranha e estrangeira, se torna íntima e pessoal.

Ao final, talvez o retrato feito sobre nós mesmos, não seja o melhor, mas é certamente caloroso. Entre o ritmo desorganizado que imprimimos, um país onde, como dizia Caetano, tudo mal começa e já é ruína, abraçamos também uma possibilidade de diálogo com um futuro que pode ser sim, mais harmonioso. Aos olhos de uma poeta, isso pareceu possível.
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* Ismael Machado é jornalista e autor do livro Sujando os Sapatos- O Caminho Diário da Reportagem (IAP). Venceu o prêmio Vladmir Herzog pela série “O Dossiê Curió”, sobre Sebastião Rodrigues de Moura, o Major Curió, um dos nomes mais relacionados à Guerrilha do Araguaia.

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