7.6.21

Cineasta investiga a Terceyra Eztetyka de Glauber

João Arthur, 30, está dissertando sobre "A Terceyra Eztetyka de Glauber Rocha", em seu mestrado no PPGCine/UFF, em Niterói, RJ, tendo como linha de pesquisa Histórias e Políticas. Já conversamos com ele aqui sobre seu longa “Males Sem Terra”, premiado em 2018, no Festival Internacional de Cinema do Caeté, o Ficca. Na entrevista a seguir, também falamos sobre a importância dos festivais e seus novos formatos em tempos de pandemia.

Glauber Rocha apresentou seu primeiro manifesto do Cinema Novo, no “Seminário do Terceiro Mundo”, realizado em Gênova, Itália, em 1965. Nele estão os principais ideais políticos e estéticos explorados pelo cineasta ao longo de sua filmografia. Depois da Eztétyka da Fome, Glauber  apresentou a Eztetyka do Sonho, numa conferência realizada em 1971, no Congresso na Columbia University, em Nova York. A terceira Eztétyka está latente em sua obra, mas não chegou a ser escrita e finalizada pro ele, em vida, desafio sobre o qual João Arthur se debruça e propõe jogar luz.

Cabe aqui, antes de adentrar na entrevista, uma rápida contextualização. O principal teórico do cinema novo brasileiro iniciou sua formação na segunda metade dos anos 1950, no governo de Juscelino Kubitschek, durante sua política cultural “nacional desenvolvimentista”, que contribuiu para o aparecimento do movimento Cinema Novo, formado por artistas e intelectuais que se voltaram para a conscientização das massas populares. 

Na época, surgiram movimentos culturais, como o ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), o CPC (Centro Popular de Cultura), vinculado ao Ministério da Educação, e a UNE (União Nacional dos Estudantes). O CPC contou com a participação dos jovens cinemanovistas que lutavam por uma política cultural de natureza revolucionária, mas que logo, ao serem provocados por Glauber Rocha, romperam com o CPC e depois, o próprio Glauber viria a romper com o Cinema Novo, já prevendo seu declínio, enquanto movimento contra-hegemônico.

Todas essas questões parecem seduzir João Arthur que, antes de enveredar pela área do audiovisual, cursou Comunicação Social na PUC-Rio e, simultaneamente, Ciência Política da UNIRIO. Também neste período tornou-se membro-colaborador do Corujão da Poesia, um encontro de poesia para a libertação de livros que acontece na Região Metropolitana do RJ. Através desse grupo participou de muitos encontros, incluindo saraus em festivais de literatura como a FLIP (Paraty) e em diferentes pontos da cidade, interior do Estado e região metropolitana.  Em 2011, encerrou definitivamente seus estudos nas duas instituições anteriores, optando por continuá-los no curso de Cinema da UFF. 

Desde então tornou-se cineclubista, primeiro dentro da Universidade, depois numa casa coletiva (Palacete dos Amores) onde morava com um grupo de artistas e cineastas. Lá criaram um coletivo independente (Osso Osso) que também realizava filmes.  Após graduar-se na UFF, também se tornou pesquisador da área de cinema, dando continuidade ao seu trabalho acadêmico intelectual até o presente momento. 

Em sua filmografia, realizou "Tudo posso naquele que nunca aparece" (25 minutos, 2013, filme projetado no Cine Arte UFF (programação do FBCU), no MIS/SP, dentre outras exibições independentes; “Males Sem Terra” (73 minutos – 2016) exibido, além de outros lugares, na 11a Mostra Cine BH, Festival Chorume e no IV FICCA, onde ganhou o prêmio de melhor longa-metragem e “O Bobo na Rua” (esboçado em 111 minutos já montados, mas ainda em processo de finalização desde 2019), um documentário sobre o professor Sergio Santeiro, ator, roteirista, professro e grande ativista do cinema brasileiro. 

Holofote Virtual: O que mais te fascina em Glauber Rocha, cuja obra tem sido referência estética, política e social para o cinema? 

João Arthur: Considero Glauber uma figura imprescindível  para o desenvolvimento de um cinema revolucionário sul-americano e de uma “linguagem” nova do cinema no mundo. Além do que, pesquisar e escrever sobre Glauber é estimulante e desafia a produção intelectual de qualquer jovem cineasta. 

Aprendi muitas  coisas na universidade e fora dela, mas só entendi de verdade o que é fazer cinema no Brasil quando me aprofundei na obra cinematográfica e literária de Glauber. Mas eu estudei e sigo estudando cinema, suas teorias ao redor do mundo, as discussões sobre técnica, história, política, estética, etc. Não o considero um “mito do cinema brasileiro” que deve ser “destronado”, como alguns (até mesmo, pasmem, da minha geração) insinuam, mas sim um “destronamento ambulante” que não deve ser mitificado. 

A mitificação de Glauber me preocupa pois o erige a uma posição na maioria das vezes soberba, afastando-o tanto dos estudantes, dos pesquisadores, quanto do público, tornando sua produção mais hermética do que parece. Minha posição é de que Glauber é mais “palatável”, digamos, do que se pinta por aí. Todo o seu esforço em vida foi no sentido de produzir uma interlocução clara e distinta com o povo brasileiro, a fim de que sua contribuição para a libertação e desenvolvimento cultural do país fosse aproveitada em toda a sua potência.

Eu estou também fazendo constantes pesquisas teóricas sobre o cinema de todos os cantos, procurando estudar as teses relevantes que foram feitas até então, principalmente as que provêm dos próprios autores de filmes, no intuito de contribuir, por meio da minha própria produção intelectual, para o avanço e desenvolvimento de uma teoria estética revolucionária para o cinema no terceiro mundo, que dê prosseguimento às lutas por emancipação e libertação social do nosso povo, das quais o cinema faz parte e contribui com vigor. 

Enquanto artista, não consigo conceber que seja coerente apartar a prática  cinematográfica de uma “teoria” como essa. Para mim a prática cinematográfica de quem se propõe a produzir um discurso teórico desse tipo necessita ter a mesma ousadia ou, pelo menos, aproximar-se dela, tendo em vista que as contradições da realização cinematográfica independente na América do Sul atrapalham a eficiência da transmutação das teorias geradas aqui para as práticas necessárias à sua demonstração. 

O que quero dizer é: não adianta os cineastas brasileiros levantarem discursos “pseudodecoloniais” enquanto apresentam obras neocolonizadas do ponto de vista da forma cinematográfica. A única coisa que se consegue com esse movimento é enganar a boa vontade do povo e explorar a ingenuidade da inteligência cinematográfica do público.

Holofote Virtual: O Cinema Novo é uma escola para o audiovisual brasileiro? 

João Arthur: Eu não vejo o cinema novo, especialmente o de Glauber, como uma escola. O cinema novo foi um movimento artístico independente e de vanguarda, mas que não fez escola. Provocou, ao contrário, disputas estéticas no interior da sociedade brasileira, algumas interessantes, outras infrutíferas. Foi sabotado, posto em dúvida, desacreditado, revisado, difamado e adorado. Quem fez escola com o cinema novo foram os gringos, que viram a novidade do nosso cinema e passaram a incorporar suas características, na maioria das vezes de maneira completamente inócua, do ponto de vista da potência estética que aqui ele tinha.

O cinema brasileiro contemporâneo é que estudou na escola do cinema atual estrangeiro. A geração anterior à minha, que é a geração da chamada retomada, ao buscar cada vez mais a profissionalização (que era para poucos, convenhamos) foi ignorando os processos histórico-políticos e estético-econômicos constituintes do cinema brasileiro até então, suas lutas, seus rompimentos e alianças, para se adequarem à “linguagem” padrão que se pode identificar em qualquer recorte sazonal feito num desses festivais internacionais que estampam as vitrines mais cobiçadas do cinema no mundo”, comenta.

A minha interpretação é de que isso aconteceu porque, na cabeça dessas pessoas, a retomada só estaria consolidada quando o cinema brasileiro voltasse aos holofotes internacionais, tal como o Cinema Novo esteve. Porém, o raciocínio que mobiliza essa expectativa parte de uma lógica neocolonizadora, num contexto internacional do cinema muito diferente daquele dos anos 60.

Holofote Virtual: O cinema de Glauber foi consagrado em festivais internacionais. Na tua opinião, estes espaços  continuam sendo importantes para se consolidar um filme?

João Arthur: Na época de Glauber, os festivais eram, como ele mesmo caracterizou, "olimpíadas culturais", onde o intercâmbio de autores independentes de várias partes do mundo alimentava as vanguardas em seus países de origem e colaboravam para que os artistas menos conhecidos, locais, aperfeiçoassem seu ofício de maneira proveitosa e pujante

Hoje em dia já não é mais assim. Essa cadeia de relações foi desterritorializada dos festivais e hoje se encontram sob outros aspectos interculturais que permanecem uma novidade no campo dos estudos sobre o assunto.

Esses festivais internacionais, hoje, são como “bolsas de valores do cinema”. É lá que se negociam as premi-ações dos filmes,cuja valorização tem reflexo direto na moeda nacional que corresponde ao mercado interno cinematográfico de cada paísque os respectivos filmes representam. Então, esses festivais atuam contra a prosperidade do cinema independente local, nativo, autóctone, desidratando-os na raiz, na sua própria concepção enquanto signo da soberania cultural de uma sociedade.

Holofote Virtual: Os festivais hoje estão sendo realizados on-line, como o Ficca, em que você foi premiado. Como você enxerga esse cenário? 

João Arthur:
 Toda novidade tecnológica, toda forma nova de mediatizar o cinema com o público já, de antemão, parte do princípio de que, para funcionar, deve nos explorar. 

A internet e o streaming já estão colonizados pelos “plays”, “plus”, “primes”, “flixs” que são as empresas imperialistas do audiovisual hoje. Eles dominam esse mercado com  tanta eficiência que só através deles é que se tem uma mínima oportunidade de exibir para uma quantidade de pessoas que ultrapasse a lotação de um cineclube. Então diante desse cenário eu só posso pensar que é preciso uma organização da classe de forma que rompamos com essa lógica planificadora.

Os festivais online não pediram permissão para chegar. Por esse motivo não dá pra dizer se são ou não bem-vindos. Foram organizados por força das circunstâncias (tanto a pandêmica quanto a emergência de uma alternativa online ao custo de um festival presencial). Eu, por exemplo, tive pouquíssimas oportunidades de exibir esse filme em festivais no Brasil, e nenhuma oportunidade de dar uma entrevista sobre ele mediante essas exibições. Só estou dando esta entrevista por causa da exibição do meu filme em um festival online... Aliás, sou grato pela oportunidade.

Eu não sei como é para outras pessoas, mas eu já estava muito acostumado a assistir filmes em casa, pelo computador. O problema que enfrento com relação a isso é justamente por causa desse meu costume. Quando a vida virou digital, por causa do isolamento social, e tudo começou a ser feito pelo computador, eu passei a não encontrar mais o mesmo tempo disponível para assistir filmes como antes – seja por conta do cansaço ocular, do tempo disponível, da capacidade do computador de operar em diversas frentes ao mesmo tempo, com muitos programas abertos (edição, escrita, internet, streaming, aulas online).

Para mim uma das grandes características do cinema é justamente a coletividade da sessão, a reunião de pessoas num mesmo espaço, assistindo ao mesmo filme, reagindo simultaneamente à mesma obra, debatendo-a em seguida, bebendo junto, fumando junto, respirando o mesmo ar, sentindo os mesmos cheiros, sendo atrapalhados pelas mesmas adversidades... 

Quando o digital era apenas uma alternativa para assistir mais filmes em menos tempo, eu o considerava bem-vindo. Depois que ele passou a ser a única alternativa para continuar exibindo filmes por conta da situação em que estamos, a disposição para o computador e para os filmes acaba sendo outra, não é mesmo?

Holofote Virtual: É verdade... E me fala sobre a Terceyra Eztétyka do cinema glauderiano, alvo de tuas investigações acadêmicas.

João Arthur: Na minha dissertação eu não proponho tanto uma fundamentação, mas menos ainda nomear o que seria essa terceyra eztetyka glauberiana porque, para mim, ela já está   bem fundamentada na trajetória cinematográfica dos últimos anos de sua vida, e pode encontrar respaldo teórico ao analisarmos os últimos escritos esparsos de sua obra literária. 

O que acredito que me caiba é fazer uma análise desta trajetória à luz do desenvolvimento intelectual de Glauber, levando-se em conta a transformação que lhe ocorreu da Eztetyka da Fome para a Eztetyka do Sonho e considerando os filmes que marcam essa transformação, até chegar aos últimos que, por sinal, não possuem teorias correlatas formuladas pelo próprio Glauber, o que nos leva a considerar a hipótese de que essa “terceyra eztetyka” ficou por ser esmiuçada e rigorosamente organizada tal como foram as outras, cujos textos ele concluiu em vida.

O filme A Idade da Terra (1980) é a expressão mais clara do caráter concreto dessa eztetyka. É através deste filme que, nos idos de 1981, Glauber rompe de vez com o circuito dos festivais europeus, representado na sua célebre passagem pelo Festival de Veneza (o “Coliseu do cinema”), onde escancarou “a guerra da cultura” contra a maquinação imperialista que vinha renovando suas táticas de monopolização do circuito exibidor e fazendo dos festivais internacionais sua vitrine homogênea e ortodoxa. Quarenta anos depois, cá estamos nós “com a bunda exposta na tela – deles – para passarem a mão nela”.

Se me permitem dar um pouco de continuidade à minha resposta sobre os festivais, minha percepção é de que o último ato do nosso mais importante líder do cinema brasileiro no século passado, num dos festivais mais importantes do mundo, última aparição sua a nível internacional, marcado por um gesto corajoso de ruptura com a política colonialista do cinema estrangeiro, foi ignorado em nome da construção de uma retomada do cinema brasileiro calcada nas diretrizes do comportamento do mercado global, como já disse anteriormente.

Quero deixar claro que isso não quer dizer que não devamos inscrever nossos filmes nos festivais estrangeiros ou coisa parecida, mas sim que devemos nos organizar e pautar nosso desenvolvimento cinematográfico por nós mesmos, visando a emancipação e libertação do nosso povo, ao invés de almejar representar o cinema brasileiro para a gringa, divertindo-lhes,dando-lhes elementos para seus escrutínios anacrônicos e arrogantes sobre nosso cinema. 

Um cinema de enfrentamento anticolonial, cujo método seja didático (materialista dialético) e cuja forma seja épica (que conta a história do nosso povo por meio da nossa mitologia), que rompa de vez com o “triste teatro da tese dos Diálogos”, como dizia o velho Oswald, com a mise-en-scène do drama burguês, que desenquadre o “plano americano” no “plano sul-americano” – menos “semi- ótico” e mais pluriótico – (risos).

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