30.5.21

Papo com João Arthur diretor de Males sem Terra

João Arthur, diretor de Niterói-RJ
O cineasta bateu um papo com o blog na ocasião em que exibiu seu filme, no Festival Internacional de Cinema do Caeté. O papo foi longo e resolvi dividir em sua etapas de publicação. Nesta primeira parte da entrevista, o cineasta fala sobre o processo de produção de seu primeiro longa, premiado como melhor longa metragem do Ficca, em 2018, e reexibido este ano, dentro da Mostra Oitava Maravilha.

“Males sem Terra é o resultado da minha percepção sobre todos os filmes que tinha visto nos principais festivais brasileiros e estrangeiros, dos quais a maioria eu não gostava ou contra os quais tinha questões de princípios, estéticas, políticas e artísticas. É assim que o situo no contexto cinematográfico da minha geração”, diz o diretor nascido na cidade de Niterói/RJ, em 1990, onde reside até hoje. 

João Arthur cursou Comunicação Social na PUC-Rio e Ciência Política, na UNIRIO, até que em 2011, deu continuidade aos seus estudos no curso de Cinema da UFF. A partir daí, tornou-se cineclubista, morou na casa coletiva Palacete dos Amores com um grupo de artistas e cineastas que criaram o coletivo independente Osso Osso, que entre outras coisas também realizava filmes. Após graduar-se em cinema, seguindo sua pesquisa na área hoje no mestrado no PPGCine/UFF, cuja linha de pesquisa é: Histórias e Políticas – com um projeto original sobre a Terceyra Eztetyka de Glauber Rocha.

Cena de "Males sem Terra"
"Males sem Terra" é seu primeiro longa-metragem. Estreou em 2016, por meio de edital da Prefeitura de Niterói, no Festival Chorume, e no ano seguinte chegou a ser exibido na Mostra Cine BH. 

Em 2018, o filme vinha sendo exibido de forma clandestina, informal e até marginalizada, por falta de convites e seleção no circuito exibidor oficial, até que o cineasta, roteirista, ator e também professor da Universidade Federal Fluminense (RJ), Sérgio Santeiro, falou para João Arthur, que o FICCA, o Festival Internacional de Cinema do Caeté, estava com seleção aberta e o aconselhou a inscrevê-lo e não deu outra, "Males Sem Terra" recebeu o Prêmio de Melhor Longa Metragem. 

Este ano, o festival realizou uma edição comemorativa, entre março e abril, com apoio da Lei Aldir Blanc. Online, como todos os demais festivais hoje em dia, o evento exibiu 20 filmes que já haviam sido premiados na Mostra Oitava Maravilha e o filme de João Arthur foi um deles, exibido pelo canal de Youtube do Ficca, onde ainda pode ser visto. O filme cai bem ao gosto cineclubista, com questões para longos debates. 

“Deveriamos tê-lo debatido de verdade em um local apropriado à época que ele foi lançado, mas as curadorias ao redor do país não se interessaram por fazê-lo, à exceção do Francisco Weyl (FICCA), do Francis Vogner, Pedro Butcher e Marcelo Miranda (o trio do CineBH) e da Clara Chroma e Cleyton Xavier (Chorume)”, complementa João Arthur, que traz ainda, na filmografia, "Tudo posso naquele que nunca aparece" (25 minutos, 2013) e “O Bobo na Rua”, em processo de finalização desde 2019.  Vamos conferir a entrevista.

João Arthur (foto do perfil no Fabeook)
Holofote Virtual: João, como surge o seu primeiro longa metragem e como ele foi realizado?

João Arthur: O primeiro contexto de realização desse filme que gostaria de demarcar é o universitário. Males sem Terra é um filme independente de um jovem artista, feito na base do grito, ou seja, de maneira forçada quando, à época que estudava cinema na UFF, o corpo docente não estimulava a prática de longas-metragens – cá entre nós, depois da experiência do meu filme e do filme de Catu Rizo, que é contemporâneo ao meu, o Departamento de Cinema da UFF apertou ainda mais as regras para impedir longas- metragens pela via das disciplinas específicas para a realização cinematográfica. Apesar de ser um filme de um estudante universitário, se tivesse dependido da universidade para sua realização estaria até hoje com ele na mesa, “em processo”.

O segundo contexto é o político. Este filme foi escrito entre 2012 e 2015 e filmado entre 2014 e 2016, ou seja, durante os turbulentos anos das jornadas de junho e da traição republicana que deu início à intervenção militar nos três poderes do Brasil. Minha intenção era produzir um filme que olhasse essas questões sob outra ótica que não a da narrativa pelega de muitas das obras brasileiras que via naquele momento. Por ter finalizado ele logo depois que a Dilma foi deposta, não pude explorar esse assunto de maneira apropriada (coisa que intento fazer nesse meu próximo filme), então considero Males sem Terra um filme sobre as jornadas de junho e suas contradições.

O terceiro contexto é a emergência climática, que é meu tema único, uma ideia que pretendo desdobrar para o resto de minha vida, em meus filmes. No Males sem Terra eu só apresentei essa ideia, deixando claro a maneira como vejo essa questão, do ponto de vista filosófico e político, mas que também desdobro neste próximo filme.

Cena de "Males sem Terra"
Holofote Virtual: Fala um pouco da concepção do roteiro e da estética do filme? 

João Arthur: Para realizar esse filme me bastou uma ideia. Essa ideia está representada em dois frames do filme. O primeiro frame é o do plano sul-americano, que é aquele do indígena mirando uma flecha em direção à plataforma de petróleo. Aquela para mim é a perspectiva originária do nosso povo, a visão de 500 anos atrás, de dentro do território, ao ver o invasor chegando para ceifar a plumagem da terra e carburar o sangue da Deusa. À exceção do short do indígena, dos prédios ao fundo com o avião decolando no Santos Dumont e da plataforma de petróleo, todo o passado do Brasil é, ao mesmo tempo, agora. No lugar dos prédios, foi uma floresta; no lugar do aeroporto, o forte Coligny; no lugar da plataforma, a nau Capitânia ou a Santa Maria, a Nova.

O segundo frame é a da insurreição poética do professor linchado (qualquer desses frames montados ao longo do filme), que para tentar interromper o espancamento grita desesperado que não é ladrão e sim professor de história, no que um dos agressores o desafia a “contar uma história, já que ele é professor”, e insiste dizendo pra que seja a da “revolução francesa”. Quando um clarão se forma em torno do professor e ele levanta para falar, não conta a história da revolução francesa e sim a história do nosso povo.

Eu sonhei com esses dois frames, antes de pensar em fazer um filme. Foi a partir deles que tudo se originou. Foi motivado por eles que uma narrativa se impôs ao filme, no fim das contas. A estrutura narrativa dele deriva disso, mas não é tão “própria” assim, na minha opinião. Eu vejo esse filme muito como um diálogo que eu tentei fazer com meus contemporâneos, tanto da minha própria geração quanto da geração que me antecedeu. Muitos dos elementos que eu critico nesses outros filmes eu degluti no Males sem Terra da forma que eu achava que eles realmente deveriam ser aproveitados.

Cena de "Males sem Terra"
Holofote Virtual: Quanto tempo levaram as filmagens, que  dificuldades foram encontradas ao longo da produção?

João Arthur: Foi minha  primeira experiência com longas-metragens e de toda a equipe. Era um filme que eu propunha não carimbar logo marca s em sua constituição imagética – o que significa investimento, fomento, etc, ou seja, era um filme independentíssimo –, o processo de produção teve que ser adaptado aos momentos em que conseguíamos acertar as condições mínimas para cada set em específico. Isso dependia dos horários dos atores e da equipe – que trabalharam de graça –, dos ensaios de determinadas cenas e como elas iam se constituindo, das condições dos equipamentos que usávamos, do período em que poderíamos adquirir emprestada uma determinada lente, refletor, lapela, e assim por diante.

O que eu tenho de memória certamente é a distância de 1 ano que levou entre o primeiro bloco de filmagens e o segundo. O primeiro bloco foi filmado com base em materiais que eu já tinha em mãos, como para compor um determinado arranjo que apriori já estava na minha cabeça. O segundo bloco foi filmado com base na montagem do primeiro bloco, como para complementar e amarrar o sentido do filme como um todo. Desta forma, o roteiro foi reescrito quando retomamos as filmagens. O roteiro estava sempre “esquartejado”, à medida que eu ia escrevendo o essencial ficava tão gravado em minha cabeça que na maioria das vezes levávamos o texto para o set, mas resolvemos muitas das coisas sem recorrer a ele diretamente, à risca. À medida que íamos filmando a montagem se solucionava na minha cabeça, e o modo de filmar outras cenas ia se desenhando apartir dessa pré-montagem.

Cena de "Males sem Terra"
Um exemplo disso é a cena das Barcas Rio-Niterói que resultou em um especial desconforto do ponto de vista das relações públicas do Grupo CCR Barcas com o curso de cinema da UFF, afetando principalmente os estudantes que procuraram filmar lá de maneira, digamos, formal, oficial, depois de nossa experiência. 

Por termos nos esquivado a todo momento do “guarda-costas” que o Grupo CCR colocou para vigiar o nosso set (que, além de não sair da nossa cola questionava-nos, a todo momento, o motivo de filmarmos determinada cena ou de gravarmos determinado som diegético que advinha das dependências das Barcas como, por exemplo, obras, burburinhos, etc., chegando até mesmo a questionar como montaríamos uma coisa com a outra ressaltando a preocupação  da empresa de ter sua “imagem” prejudicada por qualquer montagem que “desse a entender” ao público algo que não lhes interessava do ponto de vista da propaganda, vejam vocês... 

Posteriormente à nossa passagem por lá, eles optaram por começar a recusar outras autorizações de filmagem que partiam de outras equipes da UFF, alegando  que a experiência conosco provocou “perturbação aos clientes do serviço” e utilizando esse argumento para, indiretamente, cortar relações com outras produções que eventualmente viriam a utilizar o espaço das Barcas como cenário para seus filmes. Não sei exatamente o nível do desgaste que isso provocou entre mim e os outros estudantes – ou entre mim e o departamento, ou até mesmo entre o departamento e o Grupo CCR. Nem se essa objeção da empresa permanece em vigor ainda hoje, meia década depois das filmagens do Males sem Terra.

Cena de "Males sem Terra"
Outra questão importante que gostaria de pontuar brevemente é o contexto de resistência e retomada indígena da Aldeia Marakanã. O caso da Aldeia Marakanã marcou muito aqueles anos de revolta, pois no caso do Rio de Janeiro as situações que ocorreram naquele período foram também o estopim para muitos dos protestos. 

Os integrantes do movimento estiveram sempre presente nos grandes protestos do centro do Rio, assim como algumas das figuras marcantes daqueles tempos estiveram presentes em muitos dos conflitos deflagrados na aldeia pelas forças repressivas do Estado. Na época das filmagens do Males sem Terra eles não estavam na aldeia, pois haviam sido despejados por ordens do ex-governador Sérgio Cabral. As cenas que aparecem no filme foram feitas num congresso intercultural indígena organizado por eles na UFRRJ como forma de resistência visando um plano de retomada (que acabou acontecendo à época da prisão de Cabral).

Atualmente a Aldeia Marakanã sofre novamente com ameaças de despejo e sabotagens jurídicas em plena pandemia tendo, agora, como antagonista um novo personagem, dessa vez bolsonarista, mas igualmente estúpido e truculento, o deputado estadual Rodrigo Amorim (PSL-RJ). Mas esse sujeito desprezível será moqueado na história política do BR assim como foram todos os outros, porque a magia é forte, real e sobrepõe qualquer objetivo racista.

Cena de "Males sem Terra"
Holofote Virtual: E como  está hoje sua produção, você tem planos para o futuro?

João Arthur: Os projetos que tenho neste momento são “presentes”, o que está no futuro é a sua  realização (risos). O mestrado eu estou fazendo em paralelo com o desenvolvimento desses projetos, pois acredito que são movimentos complementares, apesar do desgaste que é escrever visando duas práticas literárias completamente opostas, ainda mais no meio de uma pandemia e diante de um governo genocida. Não posso dar muitos detalhes sobre os filmes porvir, mas adianto que é mais de um.

O que está mais próximo da realização neste momento eu comecei a escrever por incentivo do saudoso Luiz Rosemberg Filho, pouco antes do seu falecimento – a quem também dedicarei a obra, que será filmada quase toda em Niterói/RJ, utilizando a paisagem modernista caracterizada pelas obras de Niemeyer na cidade em contraste com o ambiente neobarroco da Guanabara. Um filme sci-fi tropical embalado por um enredo sobre a distopia da política atual no nosso país e cujo tema principal é a emergência climática global: o “antropoceno”. Este filme se chamará “A Gaya Gaiola”.

Outros filmes estão encontrando seus esboços aos poucos, à exceção de um outro projeto, mais ambicioso, que contará a história da fundação da cidade de São Paulo, Rio de Janeiro e Niterói simultaneamente, durante o período de aproximadamente uma década, que marcou a primeira invasão europeia organizada nas terras de Pindorama cujo enredo compreende as passagens de personagens históricos como Anchieta, Brás Cubas, Villegagnon, Hans Staden, por exemplo. Porém a narrativa estará voltada para o protagonismo de personagens indígenas históricos, tais como os morubixabas Kunhambebe (primeiro líder da Confederação dos Tamoyos), Aymberê (que o sucedeu após sua morte), Pindobuçú, Coaquira, Araraí, jovens guerreiros como Jagoanharo, Parabuçú, Komorim, bravas mulheres como Iguassú e Potira, além de Tibiriçá e Araribóia, contra quem lutaram. 

Será um filme grande demais para caber em uma única obra e, por essa razão, até o presente momento, ele está dividido em três partes e me custará o trabalho de uma década inteira para ser concluído, segundo meus cálculos, a depender das oportunidades de financiamento que me surgirem. Por ora sigo na labuta da densa pesquisa que envolve a escrita do argumento e do roteiro desta trilogia, bem como da organização de sua pré-produção. No meio desse caminho, outros filmes menores e menos complexos podem surgir com força, podem encontrar conjuntura favoráveis para serem realizados, mas não há como, neste momento, prever muita coisa com relação a isso.

João Arthur (foto do perfil no Facebook)

Holofote Virtual: Vamos falar da atual conjuntura da cultura brasileira, política e perspectivas com a  Lei AldirBlanc. Qual é a sua análise?

João Arthur: Não estou em condições de fazer uma análise geral no sentido de dar conta das questões que envolvem a aplicação da lei a nível nacional, mas pelo que pude notar em meu território, foi o que permitiu uma certa continuidade da produção cinematográfica independente, principalmente a de baixo orçamento, incluso curtas metragens, oficinas, aulas online, etc.

Aqui na minha cidade, uma parte desse montante foi direcionada para um objetivo um tanto quanto inusitado e de caráter realmente emergencial: o prêmio Erika Ferreira (em homenagem a uma atriz e diretora teatral da cidade, que faleceu vítima da covid-19 no início da pandemia). Esse prêmio (cujo valor por cabeça era pequeno se comparado a    outros editais que foram lançados no Estado do RJ) visava distribuir renda o mais rápido e com o mínimo de entraves e complicações para o maior número de artistas possível. 

A  maneira que eles encontraram de fazer isso foi premiando a ideia. Não era necessário, por exemplo, prestar de contas do dinheiro recebido e de como foi gasto, nem havia o compromisso de que o artista entregasse uma obra pronta como conclusão do processo, a seleção não levava em conta, por exemplo, as probabilidades e possibilidades que o artista tinha de realmente realizar por completo sua ideia, bastava que ele comprovasse que permanecia trabalhando nela, apresentando um relatório de desenvolvimento depois de algum tempo do dinheiro entregue.

Inusitado porque, se eu não estiver enganado, creio nunca ter visto um prêmio em dinheiro desse tipo para artistas independentes no Rio de Janeiro. Eu costumo fazer severas críticas ao modelo obsoleto e anacrônico dos editais Brasil afora. Por exemplo, amaneira como eles enxergam o artista do cinema e suas exigências contábeis que não levam em consideração a heterodoxia de uma produção cinematográfica independente diante da cornucópia de maneiras e modos de produção que temos em desenvolvimento simultaneamente no país. 

Nós artistas e produtores aqui na ponta nunca daremos conta de amortecer os impactos da falta que faz uma agenda  nacional de valorização dessas questões. O que podemos fazer é o máximo que nos couber, com afinco, rigor estético e coerência política. Eu, por exemplo, filho de uma migrante nordestina, mas nascido e criado na Guanabara – onde tenho profunda raiz, produzo minhas obras, sobre a qual direciono o foco de minhas escaramuças, intervenções públicas, debates políticos e estéticos sobre o cinema – nunca imaginei que minha primeira entrevista sobre o Males sem Terra, quase cinco anos depois da primeira exibição pública do filme, seria dada a um veículo de imprensa do Pará por ocasião de ter ganhado um prêmio em Portugal, dentro de um festival amazônico. A vida é cheia de surpresas. E sou grato por elas.

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