9.12.19

Leia Mulheres traz obras de Maria Lúcia Medeiros

Em Bragança é mês de celebrar São Benedito e, não à toa, também foi o escolhido para a ler duas obras de Maria Lúcia Medeiros, escritora bragantina cujo legado, impregnado dessa cultura, é hoje de difícil acesso, pela falta de uma política editorial de publicação e reedição, o que restringe obras de inúmeros autores, ainda mais aquelas escritas por mulheres. A ação integra um movimento mundial e será realizada no sábado, 21 de dezembro, às 16h, na conhecida Praça do Coreto.

Projeto colaborativo para a divulgação e incentivo à leitura de autoras, o Clube de Leitura Leia Mulheres se espalha por todo o país.  Em Belém, por exemplo, o encontro de dezembro será no domingo, 15, no Museu Emílio Goeldi, das 9h às 12h, para ler  "O papel de parede amarelo", da escritora Charlotte Perkins Gilman. Trazendo temáticas diversas, como feminismo, racismo, obras indígenas, periféricas e tantas outras, não importa, o único critério que define o poema, texto ou conto a serem lidos é que seja de autoria de uma mulher. No mais a discursão é livre, sem sistematização acadêmica.

“Bragança no mês de dezembro irradia cultura, história, música, literatura, o clima muda, os tambores de São Benedito ressoam por todos os lados, então escolhemos a escritora Maria Lúcia Medeiros como a autora da vez. Vamos ler o conto Quarto de Hora, mas também o poema Benquerença, que foi publicado na obra antologia da Marujada organizada por Valentino Dolzane do Couto”, me explica Larissa Fontinelli, uma das idealizadoras do Leia Mulheres Bragança, em entrevista ao Holofote Virtual.

Há dois anos que o grupo vem se afirmando no cenário cultural da cidade, situada às margens do rio Caeté, no nordeste paraense. O primeiro encontro aconteceu em janeiro de 2018, mas já era um desejo antigo das mediadoras oficiais e iniciais, Karina Castilho - uma leitora voraz, naquele momento, caloura do curso de Letras, e Larissa Fontinele - professora de Literatura na rede pública de ensino que, nesta edição, divide a mediação com Bianca Goes.

A opção sempre foi por organizar as rodas em espaços públicos, mas por conta de algumas dificuldades, os primeiros encontros ocuparam bibliotecas de escolas e outros espaços, até que o grupo passou a se encontrar com mais frequência no coração da cidade, o Coreto histórico Pavilhão Senador Antônio Lemos, na Praça Antônio Pereira, a conhecida Praça do Coreto.

O espaço fica em frente ao Museu da Marujada, bem pertinho da orla e da igreja de São Benedito. Desde que a roda passou a ser realizada lá o público, que era em média 5 mulheres, por encontro,  triplicou. A intenção agora é dar mais espaço a autoras da região e estender as rodas para outros lugares próximos de Bragança.

“O clube de leitura se fortalece a cada encontro e, inclusive, já promoveu encontros com as escritoras do mês, como a Márcia Kambeba, escritora indígena brasileira que mora em Castanhal. E como a parceria tem dado muito certo e mudado muitas formas de pensar, o grupo se ampliou para o município de Capanema, com quatro mediadoras: Andréa Ribeiro, Deyse Abreu, Roberta Laíne e Valdete Gomes”.

Larissa Fontinele estuda literatura há quase vinte anos, quando ingressou no curso de Letras. “Tive a oportunidade de ter aulas como o professor José Arthur Bogéa, amigo pessoal de Maria Lúcia que nos possibilitou o encontro com a autora. Na ocasião lemos o conto Velas, por quem?”, diz Larissa, que aquela altura não sabia da importância da autora, não conhecia seus textos e nem tinha ideia de que futuramente ela faria tanto sentido em sua vida. 

“Tempos depois escrevi uma monografia para o término da minha especialização em estudos literários: Noites e noites com Maria Lúcia Medeiros: Leitura de alguns contos notívagos da obra, sob a orientação do mestre Joel Cardoso. Minha pesquisa acadêmica em literatura também me levou para outra autora bragantina, Lindanor Celina. Atualmente pesquiso literatura de autoria de mulheres indígenas”. Na entrevista a seguir, converso um pouco mais com ela sobre o surgimento do grupo em Bragança.

Holofote Virtual: Como vocês conheceram o Leia Mulheres?

Larissa Fontinele: O primeiro contato com o Clube de Leitura Leia Mulheres se deu através das redes sociais. É importante frisar que o Leia Mulheres é um projeto colaborativo para a divulgação e incentivo à leitura de autoras. A mediação deve ser sempre feita por mulheres. Homens são bem-vindos apenas para participar das rodas de conversa. A coordenação nacional fica por conta de Juliana Gomes, Juliana Leuenroth e Michelle Henriques, que cuidam das redes sociais, do site do projeto e de possíveis parcerias com editoras.

Holofote Virtual: Que autoras já foram lidas durante estes dois anos de rodas?

Larissa Fontinele: Nesse período já lemos para mais de 20 obras. A nossa primeira leitura foi a obra Olhos D’agua, de Conceição Evaristo. Naquele encontro sentimos a dimensão da importância de ler autoras que nos representam efetivamente nas nossas lutas, dores e vitórias diárias, entre olhos cheios d’agua nos conhecemos e reconhecemos, já lemos desde a líder revolucionária russa Alexandra Kolontai passando por clássicas brasileiras como Clarice Lispector até as mais contemporâneas Djamila Ribeiro, Tatiana Nascimento, Márcia Kambeba, Grada Kilomba e Joice Berth. 

Holofote Virtual: Qual é a principal dinâmica da roda?

Larissa Fontinele: Enquanto mediadoras, cabe a nós conduzirmos a roda de conversa, deixar fluir a ponto em que todos sintam-se à vontade para compartilhar suas impressões sobre a leitura.  O que se espera sempre é que os participantes da roda falem sobre o que sentem a partir da leitura do texto literário, ou seja, como a leitura ultrapassa seu corpo e sua voz, qualquer pessoa pode chegar e sentar-se conosco, compor a roda e se expressar.

Holofote Virtual: Como se deu a curadoria para chegar a estes dois trabalhos da autora?

Larissa Fontinele: A autora já estava na nossa lista de leituras desde o ano passado, mas decidimos incorporá-la a nossa roda de conversa neste mês tão lindo em que Bragança respira renovação de ares. A escolha da narrativa e do poema se dá exatamente pelo espaço afetivo da memória que a escritura da Maria Lúcia compõe em sua literatura, como não se encantar com um texto reflexivo de uma mulher para outra mulher (nós, leitoras), em uma passagem como esta:

“Nem tive precisão de olhar para trás. Já era o dia seguinte e o Sol que me fizera despertar anunciava o dia pelo meio. Pus-me a caminho. Deparei-me dona, senhora de mim, possuinte dos meus próprios passos, sem saudades”. 

(Trecho do conto Quarto de Hora). 

Ou ainda, como não lembrar e sentir os ares de Bragança:

“O rio é minha cidade
O pai, a mãe, a família, 
Raízes galhos trançados
No tempo que nem sabia.”

(Poema Benquerença)

Maria Lúcia Medeiros (1942 - 2005)
Sente, me diz o que sentes? Pois é, a gente sente. A escrita da Maria Lúcia é isto, esse sentimento de tudo em nós, por isso, gostamos tanto do seu texto, e reconhecemos a importância de suas obras para literatura nacional.

Holofote Virtual: Momento de muitas trocas e um grande incentivo a literatura feita por mulheres! 

Larissa Fontinele:  Nosso objetivo é mostrar para as editoras que estas obras devem fazer parte do mercado editorial, infelizmente e atualmente, só conseguiremos encontrar a obra em sebos de livros usados, uma ou outra obra da Maria Lúcia Medeiros perdida nas estantes.

Por isso, fizemos a digitalização do conto e do poema dela, ou seja, de partes das obras para darmos conta dessa demanda que o mercado não quis suprir, isso é um ato de resistência literária também, aproveitamos, então, para manifestarmos o nosso descontentamento com os nichos do mercado que detém obras de autoras e as escondem em seus limbos editoriais. Queremos mais autoras paraenses publicadas!

(Fotos cedidas por Larissa Fontinele)

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