17.11.24

Sobre Momo e Alberto Silva Neto

Por Ismael Machado, com 
fotos de Samia Oliveira e Wlad Lima.

O psiquiatra José Ângelo Gayarsa, que se notabilizou por fazer ‘sessões e consultas’ na televisão, costumava dizer que a família- pelo menos a nossa família tradicional ocidental- era fonte das nossas maiores mazelas e traumas psíquicos ao longo da vida. Creio que Nelson Rodrigues assinaria embaixo dessa afirmação com um largo sorriso no rosto. 

É difícil olhar ao lado ou mesmo internamente e não ter uma sensação de que nossas fissuras emocionais não são causadas por esses anos de convivência familiar, negociando emoções, suprimindo dores, alimentando fantasmas de rancores, invejas e solidões. Há saída? Difícil dizer.

Alberto Silva Neto encontrou uma. Ou não, vá se saber, numa filosofia caetânica, de resto um ícone na vida de Alberto. Expor as fraturas e as feridas de um relacionamento com o pai e, por tabela, com um avô não conhecido (e que personagem fascinante) foi um modo de o ator Alberto exorcizar o pai, o avô, a família. Prestar homenagem ainda que às vezes sombria, foi uma solução para alguns demônios, anjos noturnos que podem atravessá-lo em noites perdidas, deitado na rede e olhando a cidade do alto.

Momo, o espetáculo exorcismo, o monólogo das entranhas, a peça divanesca, o teatro testemunho, ou qualquer outra definição que queiramos ou possamos dar é, antes de tudo, um atravessar por um terreno pedregoso. Sim, estamos vendo as águas do mar, a praia lá adiante, mas para chegar até ela, é necessário talvez cortar os pés nas pedras afiadas que nos separam dessa suposta recompensa. Não, não nos iludamos. Como o personagem em determinado momento, precisaremos arrancar fora os calçados e encarar os passos nus.

Alberto Silva Neto é um monstro. É um artista-ator que chegou a um momento de plenitude dramatúrgica onde a palavra assombro talvez seja a melhor a nos definir quando o assistimos em cena. Sou testemunha disso. Alberto fez parte de meu primeiro longa de ficção, Flashdance TF e eu, que sempre o cogitei para o papel desde a escrita do roteiro, admito não estar preparado para o que presenciei de forma tão íntima e tão intensa. Cláudio Barros, outro gigante amado, não me deixaria mentir.

Em Momo, Alberto se despe e se veste. Se traveste de armaduras e as joga longe. Ao encarar a vida e a morte do pai, entre cartas, recortes, missivas que mais parecem uma garrafa jogada ao mar, ele nos amarra ao pé da mesa da escuta. Só que essa escuta não é isenta de dor. Ela nos leva aos nossos próprios assombros, nossos escuros, ali onde algo nos escava feridas, nos atropela memórias.

É dor feito gozo, como cantariam Gonzaguinha ou Djavan, que já abordaram essas funduras em letras musicais. Ou aquilo que Caio Fernando Abreu sempre dizia, sobre a dor de criar algo que é verdadeiro, no sentido não da palavra verdade, mas aquela coisa que não nos deixa mentir quando o espelho nos mira de volta nos sombrios momentos de solidão urbana.⁷

O que Alberto busca e ele costuma enfatizar isso, é ultrapassar a barreira do mero ser-estar ator e ir um pouco além. Ou muito além. Alberto grita e chora e ri e sussurra e se cala. E entre os olhos umedecidos ele sorri e confessa ser teatro o que faz. Mas é uma armadilha também, pois nunca é só teatro. A vida pulsa. No efêmero e no eterno.

Há vícios e virtudes no caminho de qualquer artista. Egos impelidos a criar e dizer e mostrar algo que são como portas entreabertas, janelas que iluminam porões empoeirados, onde o fogo que queima gera uma cinza pouco acessível. Não é uma tarefa fácil sacudir os esqueletos de cada armário.

Em Momo há as compreensões e incompreensões sobre os papéis de cada um numa história masculina. Paternar. O pai, o filho, o desamparo materno, o pai que somos, os filhos que fomos, o futuro e o passado que se embolam. Onde o abraço? Onde o encontro? A voz tonitruante imperativa. A voz do pai. A voz do medo. Da distância, do afeto suprimido. Pai. Descasquemos as peles, arrancando as cascas de ferida. O que nos sobra?

Alberto entrega e pede de volta. Reclama compreensão e aceitação. Esse sou o eu descarnado. Talvez não seja. Talvez seja apenas teatro. Mas se teatro é vida, é a vida que está sendo jogada em nós? 

Ou é simplesmente mais uma folia de momo num carnaval de ruas desertas?

O palhaço chora. E eu o observo de meu próprio picadeiro. Alberto?  Esse quer se equilibrar na corda lá em cima. A pergunta que me faço é: há rede para amparar a queda, se houver?

Ave, Alberto. Te saúdo. 

(Ismael Machado)

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