29.8.11

Eliane Brum fala de Belo Monte e aposta no velho e bom jornalismo

Segue a reprodução da excelente entrevista com Eliane Brum - por Ismael Machado ("Sujando os Sapatos", Coluna Parabólica - Caderno Por Aí) - publicada  em Caderno Especial deste domingo, 28/08, no Diário do Pará.

Sempre repórter. É assim que a jornalista Eliane Brum se define. O resultado dessa dedicação foram os mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de jornalismo. Só que, além disso, há outras vozes que ela busca preencher. A mais recente é o romance Uma Duas. Um capítulo a mais nesse ofício de retratar o humano, onde quer que ele esteja, mas principalmente, se ele estiver ali ao lado. E com a experiência de quem já andou muito pela Amazônia, ela dá um recado: “Se “A Amazônia é nossa” temos de nos responsabilizar por ela com ações”.

Ismael Machado: Há um romance teu agora (Uma Duas). Há o enveredar pelo audiovisual. São expansões do que pretendes dizer? O jornalismo tradicional já não te cabe?

Eliane Brum: A reportagem sempre me cabe. Ser repórter nunca foi uma profissão para mim, mas um jeito de estar no mundo. Mas não o meu único jeito de estar no mundo. Acho que se desinventar e se reinventar é a grande tarefa permanente da vida – ao mesmo tempo dolorosa e divertida. É também uma ótima maneira de não sucumbir ao risco de virar um personagem de si mesmo, ameaça da qual tento sempre escapar me desafiando a fazer algo diferente. Me considero uma contadora de histórias – e, para contar histórias, tenho várias vozes e estou sempre necessitando de mais alguma. 

Uma História Severina, dirigido junto com Débora Diniz
Fazer documentários – estou no meu terceiro – é um jeito de contar histórias com imagens. Escrever uma coluna na internet, como tenho no epoca.com.br às segundas-feiras, é outro jeito. Fazer crônicas, como também faço toda terça-feira no vidabreve.com, idem. E, por último, descobri que existem realidades que só a ficção suporta. Para dar conta desta percepção, que se transformou em uma necessidade profunda e depois em uma insônia, eu precisava criar uma voz na ficção – ou dar voz àqueles que falam nos abismos de mim. Então escrevi meu primeiro romance (“Uma Duas” – Leya).

Ismael Machado: O jornalismo literário, as grandes reportagens, o conteúdo mais completo, mais analítico, serão a salvação do jornal impresso, num momento em que se apregoa o fim dele?

Eliane Brum: Desde que me conheço por gente estou sempre ouvindo sobre o fim disso ou daquilo – e agora até o mundo dizem que vai acabar no ano que vem. Esses anúncios apocalípticos me dão um pouco de sono. Não me interessa muito o meio onde se fazem as coisas. 

O que importa é fazer aquilo que é preciso ser feito: neste caso, contar histórias com responsabilidade e competência. O que importa é que a reportagem não acabou – e não acabará. O bom jornalismo não acabou – e não acabará. Apenas está tendo que lidar com novos desafios – e com um número muito maior de possibilidades. 

"O que importa é que a reportagem não acabou – e não acabará"
Acredito que a grande reportagem e os textos analíticos se tornam cada vez uma necessidade maior num momento em que a notícia é instantânea na internet. Do contrário, por que o leitor vai comprar o jornal ou a revista? Mas acho que a internet também está se tornando um espaço incrível para a grande reportagem. 

Na minha coluna online eu tenho resgatado as entrevistas longas, que há muitos anos não têm mais espaço no jornalismo impresso. Recentemente publiquei uma entrevista, por exemplo, intitulada “Minhas raízes são aéreas”, com Debora Noal, uma psicóloga dos Médicos Sem Fronteiras, que tinha 63 mil caracteres. Ou seja, se fosse publicada na revista impressa, precisaria de quase 30 páginas. E a entrevista foi o texto mais lido do site por semanas. Foi lida por dezenas de milhares de leitores – não só no Brasil, mas em diversos países do mundo. E continua sendo lida. 

Então, acho que as novas ferramentas tecnológicas estão exigindo profundidade, análise e maior qualidade no jornalismo em geral – não só no meio impresso, mas em todos os meios – na medida em que a quantidade de informações é muito grande e é preciso dar um excelente motivo para o leitor ler o que você escreve e não o que outra pessoa escreve. 

Neste mundo com tanta informação é cada vez mais importante trazer o jornalismo para o seu lugar, que é a zona cinzenta, o espaço do contraditório, o território das nuances, onde o leitor pode alcançar a complexidade de uma realidade em que o repórter esteve – e ele não. E então fazer suas próprias escolhas.

Livros publicados.
Ismael Machado: O que a estrada mais te ensinou em todos esses anos de jornalismo?

Eliane Brum: A escuta. Acho que, em geral, em todas as esferas da vida, as pessoas falam mais do que escutam. O que é uma pena, porque aí ninguém se ouve e nada muda. A reportagem me ensinou a ser uma escutadeira, a escutar a realidade não só com a audição, mas com todos os meus sentidos. Aprendi a escutar as pessoas, o país e, todas as mudanças profundas da minha vida pessoal aconteceram a partir desta escuta. Aprendi tanto com os livros do cânone quanto com os brasileiros anônimos, muitos deles analfabetos, que fazem literatura pela boca neste país e em outras partes do mundo.

Minha mais recente mudança pessoal, que foi deixar um emprego, passar a ganhar quatro ou cinco vezes menos e me reapropriar do meu tempo começou com a frase de uma mulher chamada Ailce de Oliveira Souza. Em 2008, eu a acompanhei nos últimos 115 dias da vida dela para fazer uma reportagem sobre a morte – que, claro, acabou se revelando uma reportagem sobre a vida. Ela tinha acabado de se aposentar quando descobriu que tinha um câncer incurável. Disse, então, olhando para a vida que terminava: “Quando eu tive tempo, descobri que meu tempo tinha acabado”. Escutei essa frase profunda com todos os meus sentidos. E, a partir dela, me reinventei mais uma vez.

obra mais recente.
Ismael machado: Longe das capitais, como enxergas a possibilidade do jornalismo em cidades menores?

Eliane Brum: Acho que não existe mais longe desde a internet. O jornalismo em cidades menores agora pode ser amplificado pelo mundo inteiro, desde que tenha qualidade e saiba se conectar às redes sociais. E se pode fazer jornalismo de excelente qualidade nas cidades menores. Basta existir uma pessoa que já temos uma boa história para contar. Só é preciso saber ver e saber escutar. Cada vez mais, é preciso ter qualidade. 

O leitor agora também se conecta ao mundo inteiro e muitas vezes também se torna autor. Então, não basta poder falar/escrever para o mundo inteiro – é preciso ter o que dizer. Só é escutado quem tem o que dizer. Neste mundo aberto a todos (ainda bem!), cada vez será mais importante a construção de conhecimento e a experiência – já que só assim temos o que contar. Se tudo der certo, o jornalismo feito por telefone vai morrer – e a experiência de sujar os sapatos, tocar nas pessoas, apreender a complexidade do real é o que será valorizado. Só fazendo o velho e bom jornalismo teremos algo para contar que faça diferença neste mundo conectado virtualmente.

Ismael Machado: E a Amazônia? Achas que ela é vista de forma enviesada pelo centro/sul?

Eliane Brum: Acho que não apenas pelo centro-sul. Imagino que aí mesmo em Belém muita gente não conheça a Amazônia. 

De uma forma geral, o que percebo é que há uma histeria entre os brasileiros traduzida pela frase “A Amazônia é nossa!”. Ótimo! Se é minha, sua, de todos nós que vivemos no Brasil, então, quem sabe a gente cuida dela? Não são “os gringos” que estão acabando com a Amazônia, mas os sucessivos governos e nós mesmos, seja por ações diretas, seja por omissão. 

Fico estarrecida com a omissão da maioria da população brasileira – e também de parte da imprensa, local e nacional – diante de duas aberrações que se desenrolam agora, bem no nosso nariz: a hidrelétrica de Belo Monte, uma das histórias mais mal contadas da história recente deste país, e o novo Código Florestal. 

Belo Monte: atropelando a lei e passando por cima da floresta
Se “A Amazônia é nossa” temos de nos responsabilizar por ela com ações. E cada um precisa ter vergonha na cara e fazer a sua parte como cidadão brasileiro para proteger um patrimônio natural, cultural e biológico estratégico para a vida do planeta. E a maioria de nós não está fazendo. 

E por isso obras como Belo Monte estão atropelando a lei e passando por cima da floresta e de todos nós, assim como defensores anônimos da Amazônia estão sendo assassinados em mortes anunciadas. Falar é fácil, se comprometer dá trabalho.

Um comentário:

ubirajara vieira xavier. disse...

Muito boa a entrevista.Ela(Eliane) é sincera e mágica.