26.6.14

Entre os pássaros e as cores de Michelle Cunha

“Como um sol no meu quintal” é o nome da mostra, em que desponta uma série de desenhos de pássaros e outros trabalhos, que resultam de um momento especial na vida da artista. Michelle Cunha montou um atelier, na ilha de Mosqueiro, distante uma hora de Belém, onde se inspira todos os dias. O trabalho pode ser visto a partir desta quinta-feira, 26, na Galeria Gotazkaen (Rua Ó de Almeida, 755). A exposição fica aberta ao público até o dia 26 de julho.

Ao todo, são 50 trabalhos, nem todos produzidos aqui, a maioria sob papel, além de telas e latinhas de spray, que ela usa em suas incursões na rua e depois recicla, as pintando. A obra de Michelle reflete sua vivência, é dela que a artista se nutre e nos comove. Quando a conheci, ela era a proprietária do Café Alma Zen, um espaço feito pra reunir gente boa e arte, principalmente, mas que nos arrebatava com ótimos petiscos e bebidinhas criativas. 

O lugar fechou e deixou saudade em Belém. Ficava ali na Rua Campos Sales, próximo da Gama Abreu, depois que saiu do porão de uma casa estilo sobrado, que Michelle Cunha morava, na Rua Ferreira Cantão. A moça começava a se despedir de Belém. Para viajar e arrumar recursos, promoveu um brechó, convidou uns amigos, que levaram umas cervejas e que enfim, plantaram a semente do Café Alma Zen, lugar  que se tornou emblemático, já no segundo endereço. 

Michelle demorou um pouquinho para partir, mas quando foi, passou oito anos circulando pelo eixo Centro-Oeste/Sudeste do país, pintando e propondo ações em Goiás e estados próximos à Brasília, sua base, como São Paulo e Minas Gerais. De volta às terras paraenses, montou um ateliê na Ilha de Mosqueiro, onde mantém as portas abertas para um ininterrupto intercâmbio de ideias e vivências com outros artistas e o público

A exposição, inédita, reúne trabalhos dedicados ao desenho e a ilustração, incluindo particularidades como cadernos de esboço, objetos, gravuras e registros de trabalhos feitos na rua – habitat onde a artista se sente em casa.  

Na série de pássaros, sua mais recente produção, assim como nas corujas, a cor e o tema não buscam qualquer intenção retórica, mas indicam uma postura aberta ao puro prazer do gesto, a volúpia da imagem, que pode acontecer tanto sobre o papel quanto nas ruas, nos muros. Seu deslumbramento pela rua como suporte surge junto com a opção por uma vivência quase nômade.

Durante a carreira, Michelle já experimentou técnicas e linguagens das mais diversas. Foi da xilogravura ao grafite, do lambe-lambe ao desenho digital, da colagem à estamparia, tornando evidente, como faz questão de reforçar, “sua ânsia e voracidade por assuntos, territórios, espaços e tempos diversos”.

Em tudo que ela vem produzindo, porém, percebe-se a necessidade de falar dos afetos e do modo amoroso e até romântico com que olha o mundo.  “Costumo dizer que a cidade é de quem ama, então minhas ações na rua, por exemplo, falam desse meu envolvimento afetivo com os lugares e pessoas que cruzam meu caminhar”, diz. Michelle. 

A artista, que enquanto abre esta exposição, já trabalha na próxima, em grandes formatos para a Galeria Theodoro Braga (Centur), concedeu, ontem, uma entrevista ao blog, diretamente de seu atelier, em Mosqueiro, antes de pegar a estrada e aportar em Belém. 
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Holofote Virtual: É tua primeira exposição de inéditos, desde chegastes a Belém? 

Michelle Cunha: É primeira, depois da temporada de oito anos em Brasília. Boa parte dos trabalhos, que serão mostrados, foram iniciados em Brasília, alguns produzidos também em São Paulo, na última temporada em que estive lá, trabalhando no Atelier de um amigo paraense (Arieh Wagner). 

Holofote Virtual: Então a exposição está repleta de referências a estas andanças...

Michelle Cunha: Essa fase traz muito da vivência quase nômade por estes lugares onde andei (Pirenópolis, Minas, SP e Brasília) onde minha produção se aproxima mais da arte gráfica, pela vivencia trabalhando numa Editora, fazendo capas de livros e ilustrando e também elementos da arte de rua, pois foi nos últimos três anos que comecei a interagir mais com o espaço urbano, no inicio com pinceis, depois com a técnica de graffiti.

Holofote Virtual: Há laços afetivos nesta exposição... 

Michelle Cunha: Acho que tudo que venho produzindo vem de uma necessidade de falar disso, dos afetos, do modo amoroso e até romântico que olho o mundo. Costumo dizer que a cidade é de quem ama, então minhas ações na rua, por exemplo, falam desse meu envolvimento afetivo com os lugares e pessoas que cruzam meu caminhar. 

Crio histórias através dos desenhos que as pessoas acolhem com afeto e elas muitas vez vem me dizer o que isso significa p elas, então daí surgem outras histórias, num diálogo constante costurado por afetividades.

Holofote Virtual: Já vi muitas corujinhas tuas por ai, imagens no facebook, de tuas incursões por Brasília, e em Belém, no Casarão do Boneco (sede do In Bust Teatro com Bonecos), em Mosqueiro... Por onde passas, deixas tuas marcas. O que significa pra ti esta série, como ela surgiu e repercutiu ou repercute nos lugares onde passas?

Michelle Cunha: Surgiu com a necessidade de levar meu trabalho pra rua, da vontade de interagir com o espaço urbano, com quem passa e vê. As corujinhas surgiram quase por acaso, mas quando comecei a leva-las pra rua percebi que elas tinham muito a ver com a Brasília, com o cerrado, pois lá nos deparamos com corujas buraqueiras em todos os lugares que tem verde, é como se elas fossem uma espécie de guardiãs do lugar. 

No momento em que comecei a pichá-las na cidade as pessoas começaram a manifestar muito carinho por elas e identifica-las como uma espécie de símbolo da cidade. Agora elas acabam se tornando uma espécie de assinatura, sempre deixo uma por onde vou, por aqui também, embora não tenham a cara de Belém, acho que agora elas tem a minha cara. Além delas, tenho outros personagens que também levo pra rua.

Holofote Virtual: Conheço uma parte da tua produção, lembro da série ‘bicicletas’, e estou curiosa para ver de perto teus outros pássaros...

Michelle Cunha: Os pássaros foram surgindo. Acredito que isso se deve ao fato de ficar vários dias sozinha trabalhando em Mosqueiro, num atelier que é quase dentro do mato, onde a presença deles é muito forte, então eu sento embaixo de uma arvore e os observo, observo a forma, as cores, os movimentos e também o canto. Eles dizem muita da leveza e das coisas simples, me trazem de volta lampejos de infância, como numa frase do Câmara Cascudo, vejo neles "a inexplicável alegria das coisas suficientes"

Holofote Virtual: Sim... estás morando em Mosqueiro. Como vem funcionando tua vida profissional, entre a ilha e a cidade?

Michelle Cunha: Estou numa temporada aqui, aproveitando o silêncio, a calmaria, a vida no mato para dedicar todo meu tempo à pintura. Esse é um tempo que sempre quis ter, não ter que sair para trabalhar fora, em outras atividades que não seja essa, trabalhar apenas no que eu gosto, no que acredito ser o que tenho de melhor a fazer. 

Não é uma fase para ganhar dinheiro, pois a ilha me isola do movimento que existe em Belém, onde as pessoas circulam mais e onde se consome arte. Então vivo aqui uma vida simples, apenas com o necessário e com o mais precioso que é ter Tempo de criar e isso é algo que me coloca num outro ritmo, onde não estou muito focada em resultados imediatos, mas em me dedicar a minha arte. 

Às vezes penso que é um tipo de sacerdócio, um envolvimento que vai além das coisas do mundo material. No entanto, para distribuição do meu trabalho preciso sair daqui, expor em nos espaços que surgem na cidade, sejam institucionais ou não, produzindo na rua também e sempre mostrando algo pela rede.

Holofote Virtual: Esse tempo fora daqui, o que te trouxe, pra onde te leva?

Michelle Cunha: Talvez tenha trazido um pouco mais de confiança, de poder acreditar que posso voar sempre que sentir vontade e que tenho um lugar para onde sempre posso voltar, que é Belém. O contato com pessoas diferentes, com outras paisagens me fez ver o mundo é minha casa e que com meu trabalho posso ir onde quiser e que é através dele que a maioria das minhas relações acontecem, então em cada lugar um pouco mais de aprendizado, de trocas, de perdas e de ganhos, de saudade que fica, de vontade de seguir um pouco mais além.

Holofote Virtual: Algum projeto novo em desenvolvimento? Tens entrado em editais, buscado apoios, como está este lado da produção?

Michelle Cunha: Fui convidada para expor em agosto na galeria do Centur, ainda estou produzindo uma série de telas em grandes formatos (180x100cm), numa exposição diferente desta que levo pra Gotazkaen. Não consigo colocar projetos em editais peque tenho uma certa dificuldade de pensar projetos que não sejam em grupo, mas tenho buscado proximidade com pessoas com quem tenho afinidades e tenho algumas ideias para vídeo arte que é algo que ainda não experimentei, mas que me encanta. Por enquanto minha fonte de renda é a comercialização de reproduções e painéis em paredes que faço por encomenda.

Holofote Virtual: Vives de arte? 

Michelle Cunha: Só sei que tenho vivido, porque sempre crio um modo de viver que não precisa ser dentro dos modelos que nos são impostos por essa lógica de mercado, de consumo. Belém precisa olhar mais para seus artistas, ainda não descobri um jeito de distribuir melhor meu trabalho aqui, por isso entrei num ritmo menos acelerado neste sentido. 

Brasília ainda é o lugar onde consigo comercializar melhor meus trabalhos por enquanto, mas eu não entendendo muito dessa lógica de mercado e gosto de pensar que vivo das vendas que eu mesma faço, onde meu maior público ainda são os amigos. 

É sempre estranho pensar a parte financeira do que faço, talvez por isso eu não consiga me encaixar num sistema mais mercadológico. Gosto de pensar que o dinheiro é consequência e não a principal motivação.

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