O líder indígena subiu ao palco à convite de Zienhe Castro, cineasta, produtora e anfitriã do festival, compartilhando reflexões sobre sua missão com os povos Yanomami e a urgência das questões ambientais, dando uma aula de sabedoria e resistência.
O Amazônia (Fi) Doc está só começando e nesta abertura já mostrou que cumpre com sua missão de amplificar as vozes sobre a região, em tempos de profundas transformações, onde a relação entre humanidade e natureza parece estar em seu limite. Nada mais certeiro que abrir o festival com “A Queda do Céu” , nos proporcionando esse mergulho no universo Yanomami. E melhor do que isso, na presença do protagonista e dos diretores, oportunidade que só costuma acontecer em festivais.
O Xamã e líder político dos povo Yanomami, presidente da Hutukara Associação Yanomami, ativista na defesa dos povos indígenas e da floresta amazônica, foi homenageado com um trofeu e trouxe ao público uma mensagem de alerta, resistência e reflexão.
Com simplicidade e profundidade, ele destacou o papel fundamental dos povos indígenas na preservação da floresta, mas enfatizou que essa luta não pode ser travada apenas por eles. "Nós precisamos estar juntos", repetiu Davi, apontando a necessidade de uma aliança genuína entre indígenas e não indígenas.
Ele falou sobre a devastação causada pela exploração da floresta, criticando o desejo incessante do homem branco por riquezas que resultam na destruição da natureza. Em suas palavras, o problema não está apenas na crise climática, mas na ausência de sonhos e na falta de respeito pela Terra como um ser vivo.
Com relação à COP30 na Amazônia, Davi expressou ceticismo em relação às soluções práticas desses encontros globais. "Vocês sabem o que vai resolver? Nada. O problema é mais profundo", afirmou, sugerindo que a raiz da questão está na desconexão das decisões globais com o que interessa ao planeta, e com os valores tradicionais que priorizam a coletividade e a sustentabilidade.
Davi concluiu sua fala com um apelo simples, mas poderoso: que todos comecem a sonhar novamente, porque é nos sonhos que se encontra a força para transformar o futuro. “A queda do céu já começou,” alertou. Mas talvez ainda tenhamos tempo. Custa acreditar, como ele mesmo diz, mas talvez a resposta esteja em sonhar mais – e sonhar juntos.
Éryk Rocha: roteiro reestruturado na comunidade Yanomami
Durante o bate-papo realizado após a sessão, Eryk Rocha compartilhou os desafios e as surpresas que marcaram a produção do filme. Ele explicou que o projeto não nasceu exatamente como uma adaptação literal do livro homônimo de Davi Kopenawa e Bruce Albert, mas como um diálogo com a obra, buscando traduzir suas reflexões para a linguagem cinematográfica.
Inicialmente, o roteiro foi estruturado em torno dos três capítulos centrais do livro – diagnóstico, alerta e convite –, mas o percurso da produção trouxe mudanças inesperadas. O falecimento do sogro de Davi Kopenawa, durante o processo, foi um momento decisivo. Esse evento levou a equipe a ser convidada a registrar o Reahu.
O ritual fúnebre, a mais importante celebração realizada pelos Yanomami, onde são reforçadas alianças tendo como pano de fundo principal a homenagem ao morto, tornou o ritual o fio condutor da narrativa, acompanhada por áudios da voz de Kopenawa, refletindo várias questões e também de algumas passagens do livro.
As gravações ocorreram numa imersão de um mês naquela comunidade e isso foi essencial para captar não apenas o ritual, mas também o cotidiano das pessoas. Éryk também disse que durante esse período, a equipe filmava diariamente, dialogava com Davi e outras lideranças e refletia sobre as camadas de significado que emergiam. Ele descreveu essa vivência como “arrebatadora”, afirmando que a festa proporcionou uma compreensão mais profunda da relação espiritual e cultural dos Yanomami com a floresta.
Outro aspecto marcante foi a escolha de trabalhar com jovens comunicadores Yanomami como parte da equipe de produção. Eles contribuíram ativamente nas filmagens, trazendo perspectivas autênticas para o processo. Essa integração reforçou o compromisso do filme em ser não apenas sobre os Yanomami, mas feito com eles.
Na etapa de montagem, Eryk mencionou que o processo foi longo e experimental, com muitas reestruturações. Ele ressaltou o cuidado em equilibrar elementos do livro com as imagens e sons captados, além de incorporar arquivos sonoros e visuais, como transmissões de rádio e ruídos de helicópteros. Esses recursos criaram uma atmosfera de tensão que refletia as ameaças externas enfrentadas pelos Yanomami, sem que fosse necessário mostrar explicitamente cenas de violência.
O diretor concluiu que o filme se tornou mais do que uma adaptação do livro; “ele é uma extensão da obra, um novo capítulo que incorpora a ‘vingança da Terra’ mencionada por Davi”. Para Eryk, o filme reflete a revolta do planeta diante da exploração desenfreada, conectando a visão Yanomami com a crise climática global.
Festival reexibe "A Queda do Céu" no domingo
Seria apenas uma única exibição na abertura, mas ontem mesmo a direção do festival tomou a decisão de exibir, mais uma vez "A Queda do Céu", trazendo agora a experiência no escurinho do cinema. Será única sessão, neste domingo, 24, às 15h30, no Cine Líbero Luxardo – Centur.
Não percam. Além de tudo, o filme de Éryk Rocha e Gabriela da Cunha é um espetáculo estético e sonoro, uma imersão na essência Yanomami, um privilégio o acesso que a equipe teve à comunidade para realizar este trabalho, tornando possível que nós também possamos conhecer mais essa realidade pela tela do cinema na esperança em que a voz dos povos indígenas seja realmente ouvida.
Noite de consciência para todos
A noite de abertura também foi marcada pela entrega de um troféu de homenagem à Zélia Amador de Deus, que celebrou com o público o Dia da Consciência Negra.
“Estou muito feliz em estar aqui, agradeço ao festival. E estou mais feliz ainda porque hoje é dia 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra, que pelo primeira vez, é um feriado. E isso é muito importante, porque o dia passa a ser nacionalizado e com isso uma consciência para todos, todas e todes”, disse a mestra. Zélia finalizou entoando a palavra Ubuntu: "Eu sou porque tu és, e tu és porque eu sou.", disse o significado aos presentes. Foi um chamado à união, tema central da noite.
A programação do 10o Amazônia (Fi)DOc segue até 27 de novembro e traz em suas mostras, muitas outras vozes amplificadas pelo cinema feito na Amazônia. O festival, nestes 15 anos de existência e em 10 edições realizadas, cresce e aprimora seu olhar na curadoria, assim como na área da formação com a realização de debates, oficinas e workshops.
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