“O oceano desperta magmas ressentidos (...) a morte mais reúne do que aparta (...) escolhe morrer de noite e não haverá espanto (...) um tanque de guerra de nuvem não consegue desviar de crianças (...) o chão não desperdiça seus mortos”.
Estes versos do paraense Paulo Vieira, num poema sem título (apenas com uma epígrafe de William Blake, para dar o crédito à influência dos “Provérbios do inferno”, do poeta inglês), cobrem um tema, a morte, caro à obra de Paulo Vieira que ganha especial importância no livro novo, “Retruque”, a ser lançado às 20h de hoje no Margarida Schivasappa (Centur).
O livro, premiado com a Bolsa Funarte de Criação Literária 2009, teve poemas musicados pelo também paraense Henry Burnett e será lançado com um CD encartado. Do lançamento faz parte um show de Henry com a banda Clepsidra e participação de Paulo declamando. Ingresso a R$ 10.
No prefácio ao livro, o professor Benedito Nunes nota que Paulo se movimenta pelo terrível “intervalo entre escrever e viver”, desafio que só é possível vencer pela forma. Benedito Nunes também ressalta que Paulo passeia por uma Belém pobre e de expostas mazelas, o que constitui um aprofundamento de um tema apenas insinuado nos livros anteriores do poeta e cronista, todos premiados.
“Retruque” também marca a volta de Paulo Vieira ao soneto, fortemente presente no livro “Infância vegetal”, deixado de lado em “Orquídeas anarqistas” e agora retomado com maturidade e força, sobre temas como a própria poesia, o amor e o sexo (talvez o principal tema do poeta), a morte, o tempo e a memória, outro tema recorrente.
Como destacou ainda Benedito Nunes, um dos principais méritos do poeta Paulo na elaboração dos sonetos (soneto, hoje, é uma escolha a que é preciso se sobreviver, esteticamente) é o encadeamento dos versos, os enjabements.
Noutras palavras, é preciso vencer a discursividade para se atingir a densidade inerente à poesia. E não custa repetir que a linguagem é que é o cabo das tormentas a ser esticado, e Paulo se revela de fato um poeta de valor em sonetos como “bagagem merencória”, o melhor poema do livro, e “idiomas esquecidos”, que casam “conteúdo”, “discurso”, “sentimento” com achados verbais e de fluidez elogiável.
Vale citar algumas “pedras-de-toque” do livro, como ilustração dessa densidade poética: “tomar por exemplo o engaste da/moeda mais sórdida, dentre as trinta,/no centro do esquife negro”, “no prego/o terço/estremece/ao compasso/do coito”, “a lua embrionária/ainda pendurada num cílio/desta manhã”, “a candura atrai os animais/para a morte”, “a corda bamba da morte ensina:/o sorriso é um verso sem palavra/que, oculto, põe navalhas na retina/e se ao canto o palhaço se escalavra,/cômico em sua dor, morto na ideia,/sobrevive aos sorrisos da platéia”.
Retoque - O desafio de Henry Burnett, ao musicar os versos, especialmente os sonetos, era transformar em “melodia” (quer dizer, achados sonoros, “sentimento de música”, “êxtase musical”, por assim dizer) a “discursividade”, os enjabements, os versos longos: adensar, pela intensidade melódica, o que, nos poemas, já precisou vencer justamente o risco de soar “frouxo” ou prosaico. E Henry venceu admiravelmente o desafio.
O disco é melodioso, ritmado, “pop” e “MPB”, de sonoridade ao mesmo tempo moderna, delicada e até mesmo com uma pegada “rocker”, e aí conta a execução e participação nos arranjos da banda Clepsidra (Renato Torres, Arthur Kunz e Mauricio Panzera), que carreou para o trabalho o entrosamento e a sonoridade peculiar atingida ao longo dos anos.
O que se encontrará hoje no Schivasappa, portanto, é um encontro raro de artistas que desfrutam do seu auge: Paulo, ao vencer a maior antítese poética, a discursividade; Henry, que de certa forma se especializou em musicar poemas (de Edson Coelho, de Nietsche, de Fernando Pessoa) e, não por acaso, é pós-doutor em filosofia; e da banda Clepsidra, que agrega à sua pegada experimentalista leituras diretamente poéticas. Imperdível.
Serviço
Espetáculo de lançamento do livro “Retruque”, de Paulo Vieira, e do CD “Retoque”, com de Henry Burnett, com show de Henry e da banda Clepsidra e participação de Paulo declamando. No Schivasappa (Centur), 20h desta quarta, com ingresso a R$ 10.
* Escritor e jornalista
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