6.3.21

"Viva a Democracia" inaugura galeria em Quatipuru

É um espaço inusitado, mas muito apropriada ao pensamento que a artista Lúcia Gomes nutre desde 1994, quando inicia sua trajetória tendo a arte como meio e estratégia de mudança, seja do pensar, agir, ver e sentir o entorno e o mundo. Trazendo um título extenso, mas que pode-se resumir à “Viva a Democracia”, a mostra inaugura no dia 11 de março, no pátio de sua casa, no município paraense de Quatipuru, como resultado do Prêmio de Reconhecimento concedido pela Lei Aldir Blanc-Pa. A curadoria da exposição é de Paula Michie Yanaguibashi, que também bateu um papo com o blog.

O título da exposição no cartaz soa como uma de suas performances, introduzindo o que seria o arremate e recado principal a ser dado. “PAM Barará Pá TUM! PAM Barará Pá TUM! PAM Barará! PAM Barará! PAM Barará Pá TCHÍÍ! Bacalhau, presente! cerveja, presente! vinho, presente! picanha, presente! Leite condensado, presente! Voltem para os quartéis! Viva a Democracia!”.

Entre as obras registradas em fotos e vídeo que estarão na mostra, cito “Banquete das Águas” e “Outros Caminhos”, de 2001; “Sanitário ou Santuário?”, “Flutuantes”, “Crisalis” e “Olhar de Vivó “, de 2003; “Stop Pedofilia” e “Convescote de Urubus”, ambas de 2004;  “MMMM, de 2005”, “1964BR1985”, de 2008, “Ditadura Nunca Mais”, de 2009; “O Pesadelo do Trabalho Infantil de Todos os Tempos”, de 2010; Projeto “Me Manda Pra China”, de 2010; “Sucuri Engolindo Corruptos e outros bichos papão”, de 2012; “AI 5 NÃO!”, de 2016; “ReplanCHE”e  “#”, de 2017. Há outras, e a mais recente, ela acabou de realizar, em Quatipuru.

“Sou eu de fantasma, só que não uso um lençol, mas sim aquele tecido de camuflagem do Exército. Chama-se ‘Viúvo da Ditadura’. É o trabalho mais novo”, diz Lucinha. “Essa exposição é para mim muito importante pois estou reunindo os meus trabalhos contra a ditadura e contra os atos enlouquecidos do Bolsonaro. É uma exposição de resistência, e outras performances e outros trabalhos. Vai ser na galeria Direitos Humanos. Eu que a criei e é no pátio daqui de  casa, uma coisa muito simples”, complementa a artista.

Viúvo da Ditadura (2021)
A obra que dá título à exposição é um tecido pintado por Lucinha, onde ela derrama um líquido que se assemelha ao do leite condensado. O processo foi registrado em vídeo enquanto era realizado um um galpão, em Quatipuru e o vídeo registro também estará na exposição, fazendo alusão, para quem tiver memória recente ativa, ao escândalo envolvendo despesas alimentícias do executivo em 2020. 

"Pintei com tinta acrílica cor de leite condensado, usando só a lata vazia do mesmo. Na performance eu ofereço ao público os dois tecidos camuflados para fazerem o fantasma viúvo também", diz Lucinha explicando a ação interativa.

Lúcia Gomes nasceu em Belém, passou sete anos de sua vida na Suíça e, desde que retornou ao Pará, se instalou na cidade de Quatipuru, onde vive e trabalha. Lúcia Gomes comemorou os 20 anos de trajetória artística com a exposição Arara Arere Ariri Aroro Aruru, e ampla programação paralela com seminários e mesas redondas, em 2014, no Instituto de Artes do Pará. Foi artista convidada no Salão Arte Pará nos anos 2016, 2017, 2018 e 2019 e em 2020 foi premiada no edital Rede Virtual de Arte e Cultura, pela Fundação Cultural do Pará.

A exposição “Viva a Democracia” ficará montada na Galeria Direitos Humanos, em sua casa, até agosto e haverá uma programação virtual para que o público que não vai poder estar presente, possa acompanhar e ver a mostra. “Ainda estamos organizando. Com a pandemia e a atual situação, ficou um pouco complicado fazer algo agora, mas vamos inaugurar e aqui receber de forma reduzida as pessoas para uma visitação programada”, ressalta. 

ENTREVISTA com a CURADORIA

Viva a Democracia (2021) -
Tecido sobre lona camuflagem
do Exército.

A curadora da exposição, Paula Michie, produtora cultural paraense pós graduada em gestão em equipamentos e industrias culturais, ressalta a importância dessa categoria de premiação por pioneirismo e relevância, ofertada através da Lei Aldir Blanc e da Secult (PA), que possibilitou a realização dessa mostra. 

Depois de viver por 13 anos fora do Pará, atuando em diversas frentes da produção artísticas, principalmente nas artes visuais, ela retornou em 2019 a terrinha. Paula também bateu um papo com o blog sobre a obra e trajetória de Lúcia Gomes, confira a seguir:

Holofote Virtual: Qual a relevância de uma premiação como essa?

Paula Michie: O reconhecimento de artistas de carreiras consolidadas como a de Lúcia Gomes é um ato de manutenção de um patrimônio cultural, histórico e local. Ainda que impossível paralisar a produção artística de mentes em constante criação como essa, a oferta de meios que viabilizam esse tipo de projeto permite que possamos dedicar os cuidados merecidos para revisitar e expor obras de tamanho valor e contemporaneidade. 

Viva a Democracia! entoa um chamado cívico em pleno século XXI. E isto traduz muito da essência da produção aqui exposta, das constantes simbologias impregnadas nas obras e vida dessa artista cujo ativismo é caraterística natural. 

O processo desta curadoria traz, principalmente, a tentativa de traduzir os próprios anseios de Lúcia neste mar turbulento que vivemos o Brasil de hoje. Há uma emergência e uma urgência de dizer, bradar e entoar o que a revolta é capaz de produzir. 

Na supressão de direitos sociais acontecendo ao escancaro de nossos olhos, à revelia dos valores humanos, nos encontramos ditados e censurados por mãos de ferro que gozam da violência social, que nos sangram a existência e o que ainda possa sobrar. É preciso dizer, é preciso gritar. 

"Amai-vos", também na mostra

Holofote Virtual: A mostra faz um recorte artístico da trajetória de Lúcia Gomes. Reúne os registros de suas performances, sempre voltadas a questões da cidadania e dos direitos das pessoas. Tudo isso por meio de expressões da arte. Como você trabalhou esses símbolos presentes nos trabalhos dela?

Paula Michie: A costura dessa narrativa político-social fez-se parecer muito com tudo o que vejo de essência na produção de Lúcia Gomes, como a coluna vertebral onde todo o corpo é sustentado e alimentado: o processo de seleção e revisita da memória de cada obra foi generosamente partilhado entre artista e curadora, evidenciando o caráter democrático onde sua trajetória sempre se debruçou. Uma eterna construção de tudo que é plural, do que seria justo e coletivo para um bem comum. 

São justamente estas as poéticas sobressalentes nas interferências artísticas como Amai-vos e Uni-vos, quando a artista propõe a comunhão de um alimento de valor cultural que já anuncia a mensagem do coletivo; Resistência, que projeta uma memória afetiva da guerra de travesseiros que as crianças costumam travar, com a mensagem poetizada no gesto de resistir e AI5 Não, quando atravessa uma mensagem direta e objetiva gravada no artefato artesanal que é a cerâmina paraense. Ela nos oferece a ideia, e a nós é difícil resistir participar. 

Holofote Virtual: Revisitando essa trajetória é impressionante perceber como a artista se mantém fiel a essa linha tênue entre a arte e o ato político. Você mergulhou nos processos dela, como poderia nos traduzir essa força disparadora dela para este tipo de expressão artística?

Paula Michie: Como filha da ditadura, ela nunca se deixa esquecer: sua produção sempre estará preocupada e pronta a relembrar as feridas de duas décadas em que se assaltou qualquer sinal de democracia – pronta a seguir comemorando o seu declínio, com a estranha sensação de vivermos novamente esse inferno social. 

1964BR1985 é uma interferência artística que fala sobre as torturas vividas por prisioneiras daquele regime, assim como Birkenau Auchwitz reproduz, dentro da poética artística, os efeitos psicológicos dessas terríveis experiências. Na indumentária de maruja – marco da cultura paraense que muito versa sobre o feminismo e o lugar ocupado por mulheres, a artista interfere no que é mais característico desse costume para protestar Pelo julgamento dos golpistas e torturadores de 1964: assim suprime as cores vibrantes da maruja para vesti-la toda de preto.

Assim seguem as incansáveis proposições de tudo que sabemos e sofremos, das diversas vertentes sociais desajustadas e violentadas, da condição da mulher, do cidadão, do meio ambiente, da justiça, e principalmente, dos afetos. Lúcia poetisa no gesto da ação e nos desvãos - ora costurando lixo na neve, ora propondo atos de afeto cotidiano, o que ela oferece é sempre uma entrega sincera e extremamente humana, na simplicidade de uma artista que parece não se importar mais com a categorização artística que a reconheçam do que com a infinidade de coisas que ainda precisa compartilhar. 

Serviço

“Viva a Democracia”, exposição de Lúcia Gomes. Na Galeria Direitos Humanos, em sua casa, no município de Quatipuru-Pa – Prêmio Reconhecimento Fotoativa – Lei Aldir Blanc, Secult-Pa. 

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