18.3.10

Entrevista: Walter Freitas estreia Fundo Reyno e mergulha nas profundezas dos rios da Amazônia

Em ensaios desde o final do mês de janeiro, o espetáculo Fundo Reyno estreou no Teatro Waldemar Henrique, onde ficará em cartaz até o próximo dia 28, sempre de quinta a domingo, às 20h.

Em cena, a magia do fundo dos rios da Amazônia, com pajés sacacas e foliões que vivem uma história de intrigas e busca pelo poder.

Fundo Reyno é Prêmio Myriam Muniz de Teatro da Funarte, e novo espetáculo deste dramaturgo, que também é escritor e arquiteto, além de jornalista e compositor, ofício que mais identifica Walter Freitas na cena artística paraense.

Mas na verdade, múltiplo, ele já foi contemplado com o Prêmio Waldemar Henrique de Dramaturgia, pela ópera "Hánêreá - Lendas Amazônicas"; publicou o texto infanto-juvenil "Fiau Babau" e, com o Prêmio IAP de Literatura, lançou a ópera "DeZmemórias", obra que versa sobre os dez anos de morte do seringueiro Chico Mendes; além de ter seu mini-texto "A Cuia Mágica", encenado e lançado em edição bilíngue em Paris, por um grupo de teatro francês.

Nascido em Belém, no bairro da Sacramenta, faz questão de enfatizar, Walter Freitas explica que a peça foi escrita, em princípio, à pedido de uma atriz baiana que conheceu em Paris, em 2005.
“Ela queria um solo pra traduzir e encenar, com produção francesa, e aceitou a idéia que criei pra ela, ainda em nossos contatos por lá”.

Mas quando chegou a Belém, Walter percebeu que essa história era maior do que ele imaginava.
“Não pude conter os devaneios de criação e acabei finalizando o texto com sete personagens, o que inviabilizou a montagem dela, mas me proporcionou outros desdobramentos aqui”, diz.

O resultado é um texto primoroso, de arrepiar ao ser todo falado em versos, rimado. E é preciso estar atento para se deixar levar para o fundo deste reyno. Quem ouvir a personagem Antero, não estranhe ou melhor, se espante sim.

A atriz Andréa Rocha dá a todo seu texto, encarnando o dono do reyno, em Nheenghatu, dialeto que tem origem na época da catequização jesuística junto aos indígenas do Brasil. E os foliões cantam, assim como todo o elenco, em latim.

O espetáculo é uma costura entre linguagens, uma bela parceria entre poesia, teatro e música que revelam, por dentro, “a destruição, a rapinagem, o descaso, a incompetência e o cinismo deste reyno”.

“E também a crueldade humana, a banalização da violência, o desejo de encontrar formas de violência que transcendam as leis e nos coloquem acima de qualquer suspeita. Sabe aquela palavra daninha, aquele pensamento de ódio, aquele desejo de praticar o oculto sem que a lei ou a autoridade alcancem você? O poder sem fronteiras, o domínio...”, conta o autor em reflexão sobre a própria obra.

O elenco é formado por Pauli Banhos (Viúva Zulmira), Juliana Medeiros (Pajé Sacaca Venina), Wellingta Macêdo (Nhá Luca / O Bicho), Andréa Rocha ( Antero Denizar), Mônica Lima (Bandeireiro da Folia), além de Akel Fares (Rabequeiro da Folia) e Walter Freitas ( Violeiro da Folia).

Na produção tem Cristina Costa; Maurício Franco assina Cenário e Figurinos; Tiago Ferradaes é o Design de Luz, a atriz Pauli Banhos também faz a assistência de direção e Wlater Freitas assina música, Direção Musical, Dramaturgia e Direção Geral.

Também fazem parte da equipe, o fotógrafo Jaime Souzza,; Nhãnhã Çayré no Design Gráfico; Mindiyara Uakti, que assina as partituras; Waldiney Machado, na confecção de tambores e Pedro Bolão do Laguinho, a Caixa de Marabaixo (Macapá-AP).

Na trama, a busca pela chave do do Reyno e o embate entre as duas pajés sacacas, se torna fábula, um sonho ou um devaneio. Mas quem fala melhor sobre isso é o prórpio Walter, na entrevista que segue abaixo. Leiam.

Holofote Virtual: Fazendo um resumo generoso de Fundo Reyno podemos dizer que...

Walter Freitas: Trata-se de uma fábula sobre a sede de poder, calcada em um quadrilátero amoroso. Mas esta sede de poder cotidiana, que te faz desejar a janela do ônibus, não o corredor, ou te impede de dar o lugar a outra pessoa, vista através de gente incomum, mas provável, que não almeja a caneta ou a tribuna para tomar decisões, mas poderes sobre os quais a maioria das pessoas nem mesmo suspeita. Intriga, sexo, feitiço, traição, morte...

Que as pessoas venham ajudar na busca pela chave do Fundo Reyno. Ver uma sessão de necrofilia subaquática, mas invertida. Descobrir se o universo feminino prepondera, de fato. Opinar sobre o pai e a filha: existe uma atitude incestuosa entre eles?

Holofote Virtual: O espetáculo é um musical, mesmo faldo, os versos soam harmõnicos, é um cordel afinal. Como a música se torna personagem na trama?

Walter Freitas: A música é de fato um elemento importante, fundamental, na construção do espetáculo, porque ela reforça conceitos que eu já havia estabelecido na montagem do “Tambor de Água”, em 2004, que é o de não fazer uso da música como um adereço, mas de integrá-la no mesmo nível da dramaturgia no processo da encenação.

Desde o “Tambor”, atores e músicos se mesclam em cena com o objetivo de eliminar a preponderância das linguagens umas sobre as outras, mas de colocá-las harmoniosamente em cena. No “Fundo Reyno”, há personagens que já são músicos, no caso os foliões, mas as demais personagens também funcionam como músicos e cantores, tocando e cantando, manifestando, enfim, essa musicalidade popular que é tão presente na Amazônia.

Então a música ou a trilha sonora, acaba tendo uma dupla função, dialética, de marcar o dia-a-dia das personagens e também de se ausentar de repente e funcionar como trilha de um momento cênico, etc. É interessante de ver e ouvir.

Holofote Virtual: Falando em ouvir, as pessoas vão perceber que há um dialeto em cena, o Nheengatu... Porque recorreste a esta línguagem?

Walter Freitas: Eu precisava de uma forma, um formato de expressão verbal para a figura do morto, que logo entendi não poder ser construído em português porque confundiria as várias sessões de diálogos e ao mesmo tempo abriria uma frente de explicações que a personagem não poderia dar.

Ela havia sido colocada por mim em um plano intermediário entre a vida e a morte, com seu corpo vagando pelas águas e sendo ao mesmo tempo depositário do grande segredo que abre as postas de todo o poder do fundo.

Quis que ele se encontrasse com as feiticeiras, mas esses encontros não poderiam obviamente ser explicativos.

Logo, a metáfora das línguas-mãe exterminadas pela colonização era tudo que podia haver de bom para isso.

Primeiro por causa das línguas e dialetos que foram compiladas pelos padres para formar uma espécie de Esperanto colonial, à serviço da catequização cristã, forçando os nativos a reaprender e similarizar o que era para eles uma prova supercriativa da sua bela capacidade de conviver na diversidade.

E, depois, por conta das línguas que foram de fato bombardeadas, massacradas, junto com as populações, e finalmente esquecidas. Eu parti de narrativas em Nheengatu, mas as desconstruí meticulosamente, ao contrário da construção meticulosa que os padres operaram, desmontando os significados e mantendo apenas os significantes. Então o que existe lá, na cena, é uma forma, desprovida de conteúdo.

É uma fala sem sentido, uma sonoridade, que começa com o delírio de Antero e se alonga até seu despertar. Uma metáfora sobre o discurso engendrado formalmente, mas escasso de conteúdos.

Holofote Virtual: O Nheenghatu também pode ser percebido nas letras de suas músicas do CD Tuyabaé Cuaá, de 1988, ou estou enganada?

Walter Freitas: As músicas do Tuyabaé são uma espécie de compilação daquilo que componho com essas características. Não se trata de uma fase de criação, mas de um espaço de criação ao qual retorno quando me apraz, e devo retornar sempre.

Na verdade isso representa uma estética literária, advindo de um processo de pesquisa e experimentação com, digamos assim, dialetos e subdialetos amazônicos, embora esse vocábulo não seja rigorosamente técnico.

São modos de falar que eu apreendi e sobre os quais me debrucei, como resultado da minha vivência na Sacramenta, originalmente, em contato com uma população que chegava de vários pontos da Amazônia, com seus modos próprios de cada sub-região, na fala, no comportamento e, sobretudo, nas histórias que se contavam e seus modos de contá-las. Daí pra elaboração de uma linguagem poética baseada nesses falares foi um pulo. Do gato!

Entretanto, é sempre bom lembrar que as letras, todo esse trabalho literário, foram como que uma “exigência” das pesquisas e experimentações musicais que eu vinha desenvolvendo (e ainda venho). Para mim, não havia nem há como compor do jeito que eu componho e não inaugurar também uma nova linguagem nas letras das músicas.

Mas há que distinguir o texto em Nheengatu dito pelo morto no “Fundo Reino” e estas expertimentações literárias criadas para a música. Aqui há todo um sentido expresso, porque são formatos usados ainda no cotidiano de várias populações, ainda que recriados poeticamente por mim.

Holofote Virtual: Então, voltando ao espetáculo, vamos falar desse processo que na verdade já vem acontecendo desde 2006? Como vocês conduziram por tanto tempo um trabalho para chegar até aqui?

Walter Freitas: Com carinho, graça e zelo. Com esperança. Pulando barreiras. Ignorando dificuldades. Acho que os vários processos dirigidos por mim para essa montagem, nas várias linguagens nos deixaram esse desejo de ver a coisa realizada. E apesar dos contratempos!

Holofote Virtual: Há uma relação de pesquisa com a Vila da Barca. Qual?

Walter Freitas: Primeiro, que não se pense que toda a crueldade expressa na montagem seja um elemento encontrado por nós na Vila ou que dela faça parte.

Ao contrário, sempre foi muito prazeroso entrar na Vila e estabelecer contato com seus moradores, uma relação que começa pelo projeto de urbanização que eu desenhei pra o espaço da Vila, ainda em 2000/2001.

A relação do Fundo Reyno com a Vila é de pesquisa corporal, sonora, vivencial, dia por dia, dirigida por mim em processos que envolveram a maioria das atrizes que hoje estão em cena. O texto, as narrativas de maldades, etc, já estavam elaborados, embora o elenco só tenha tido acesso a esse material bem depois, quando a pesquisa já estava muito avançada. Trata-se de uma ficção dramatúrgica que se cruza com a pesquisa da realidade expressa no corpo dos atores.

Holofote Virtual: Assistindo os ensaios me senti como que mergulhando em outro universo, mítico, profundo, mágico... O espetáculo inteiro propõe algo nesse nível?

Walter Freitas: Você pode até dizer que o Fundo Reyno é uma fábula sobre a sede de poder. Por esse ângulo considero que seja profundamente político, mas não quis ser óbvio e parti para uma narrativa que envolve pessoas incomuns, meio que arquetípicas e a elas entreguei todo o poder de feitiçaria de que foram capazes de se apropriar.

Toda a encenação busca essa deliberada inserção em uma outra realidade, digamos assim, como se a história se passasse numa zona de apropriação humana localizada entre o pesadelo e o sonho. A realidade, esta, fica posta nos contornos básicos traçados pela presença – não de um triângulo – mas de um quadrilátero amoroso, o que já representa uma diferenciação de enredo, porque a filha e o pai também se amam...

Mas tudo nos arrasta pra esse lugar, esta zona desconhecida e misteriosa dominada por um poder ao qual nos referimos sempre, no cotidiano de nossa cultura, mas no qual poucas chances a maioria tem de penetrar.

Holofote Virtual: Há um grande material que vem sendo coletado em textos e imagens. Pretendes dar continuidade ao Fundo Reyno através deles?

Walter Freitas: Havia um plano de incluir uma exposição no espaço de entrada do Teatro com as fotos do Jaime Souza, produzidas a partir dos processos que envolvem o espetáculo. Mas as dificuldades de produção nos impedem de apontar outros produtos e ações, antes de termos soluções reais para cada possibilidade.

De fato, além do Prêmio Myriam Muniz, que estamos realizando agora, temos uma carta da Lei Semear que nos abre chances de circular pela periferia de Belém em 2010, com oficinas, aulas-espetáculo, apresentações.

Holofote Virtual: Como tu equalizas isso de dirigir, além de atuar?

Walter Freitas: Enlouquecendo. Quem já me dizia louco, pode apostar, vai além do que vós imaginastes... Até aquilo que as pessoas vão classificar de “excessos” na montagem, a decisão de manter estes excessos como, por exemplo, o tempo de duração do que o grupo chama a “A Cena das Ervas” ou a Ladainha que cantamos, tudo isso faz parte desse processo. Eu não equalizo, eu me divirto, e nada mais divertido do que romper regras.

Holofote Virtual: E o Walter Freitas compositor. Parece estás num trabalho musical paralelo com o Mario Moraes e o Cesar Escócio. Ainda é segredo.. (risos)

Walter Freitas: Estou sim. Estamos em um longo processo de concepção artística para a realização de um concerto sobre a água.

Holofote Virtual: Então mais adiante a gente fala mais sobre isso. Além de escritor, dramaturgo, poeta, ainda és jornalista arquiteto e compositor. O Walter Freitas ainda tem alguma outra faceta que a gente não saiba?

Walter Freitas: Eu mesmo não sei, não tenho tido tempo de desabrochar novos desejos. Ah, sim! Quero ser padre, ainda.

Holofote Virtual: Como jornalista você atuou em alguns jornais da cidade...

Walter Freitas: Várias vezes no Liberal e na Província, cuja morte assisti, e também no que antes foi o Diário do Pará e que se chamava Estado do Pará. Também fiz assessoria de imprensa na prefeitura e um pouquinho no IAP. Comecei como redator, depois fui ser repórter na Província e mais tarde editor. Editei política, cidades, economia, internacional... Mas minha editoria favorita era a de Polícia.

Holofote Virtual: O curso de arquitetura veio quando?

Walter Freitas: Eu desenhava projetos caseiros há muito tempo, pra minha mãe e pra mim mesmo. Um dia comprei uma casa e a transformei em um laboratório, com um lápis uma régua e antigos papéis milimetrados de jornal, os velhos diagramas. Daí decidi ser arquiteto e urbanista. Talvez seja das minhas atividades a que eu mais ame. Pena que sua função social seja malbarateada.

Holofote Virtual: Já a dramaturgia, a poesia e a música estão na veia desde...

Walter Freitas: Comecei compondo e escrevendo letras, meio que criança ainda. No teatro, comecei pelas mãos do Ramon Stergmann, como contra-regra, depois fui ator no Grupo Maromba, fundado por mim e por ele. Com o Ramon aprendi os rudimentos do teatro e da dramaturgia.

E aí não quis mais largar. Mas considero que, nesse aspecto, houve uma virada em 2003. Eu iniciei este ano decidido a fazer um espetáculo solo de teatro.

Saí buscando pessoas para compor uma equipe técnica e fiz a proposta a vários, recebendo contrapropostas que não se confirmaram.

Até que falei com o Alberto Silva Neto e ele disse que aceitava trabalhar nesse projeto, desde que fosse pra cena junto comigo. Começamos a trabalhar imediatamente, em uma sala, tentando integrar as linguagens de música e teatro, até o final de 2003.

No início de 2004 ele foi premiado com uma bolsa do Instituto de Artes do Pará e nós levamos esse projeto pra lá. Bem, o resultado foi a montagem do “Tambor de Água”, que considero revolucionária e me parece estar rendendo muitos outros frutos, ainda.

Holofote Virtual: “Fundo Reyno” tem uma agenda a ser cumprida. Além da temporada, pensas em levá-lo a outros espaços?

Walter Freitas: O Fundo Reino tem uma programação de circulação preferencialmente pela periferia da região metropolitana de Belém. Mas tudo depende de patrocínio.


Fotos: Holofote Virtual (ensaio de quarta-feira, 17 de março, no Teatro Waldemar Henrique).


2 comentários:

Alberto Silva Neto disse...

Assisti ao espetáculo na sexta-feira, 19, e percebo que realmente há muitas boas ideias sobre dramaturgia e encenação, porém preciso dizer que o trabalho carece de maior rigor técnico, na medida em que eu, como espectador, pouco pude compreender da trama (não pelas opções estético-sonoras da direção, mas pela falta de domínio técnico do elenco na projeção vocal da palavra). Isso representa uma perda considerável para o trabalho, na minha opinião. Desejo que o grupo acrescente ás sua sboas ideias essa busca por torná-la mais acessível tecnincamente ao espectador, até por compreender a importância dessa estética para o teatro feito entre nós (desatados?).

Anônimo disse...

Também fui assistir o espetáculo, na sexta-feira e gostei muito. Apesar da acústica ruim do teatro e, pior, do calor que continua assustando o público. Faz mais de um ano que se promete trocar o ar condicionado. uma pena.