Doutor e Mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ, Marcello Gabbay lança no próximo dia 11 de janeiro, em Belém, o livro "Comunicação: Poética e Música Popular: uma história do carimbó no Marajó" (Ed. Appris, 323 págs). Na Livraria da Fox, dia 11 de janeiro, às 19h, véspera do aniversário da cidade.
Marcello Gabbay mora em São Paulo, mas está em Belém, desde a semana do Natal, curtindo a família, e deve ficar por aqui ao menos até o do lançamento de seu livro.
Em entrevista ao blog, ele conta que foram seis anos de pesquisa. Nesse tempo, o autor morou em seis cidades diferentes, dormiu em casa alheia, em rede, no chão, no navio, na estrada. Marcello lembra que andou de Istambul a Montevideo, ouvindo música, descobrindo discos, vinis, partituras, livros, museus.
“Andei coletando tudo que me ajudasse a pensar na música popular, na poética do território. Eu queria muito botar esse livro na roda. Devo isso a Soure e aos intelectuais sourenses que estão lá, na labuta e na canção”, arremata o professor paraense que hoje está radicado em São Paulo.
Neto de um filho de Afuá, originário dos judeus emigrados do norte da África no século XIX, Marcello Gabbay passou a caminhar pelos campos marajoaras mais frequentemente a partir de 2004, quando trabalhou em projetos de comunicação popular no Tucumanduba, zona caranguejeira de Soure. Ex-funcionário da Embrapa, ele também trabalhou com apoio à pesquisa agropecuária em Salvaterra e Cachoeira do Arari.
Em 2010, o documentário "Muiraquitã", de Zeca Ligiéro, o levou de volta a um mergulho nas encantarias de Soure, mas três anos antes, sua pesquisa de Mestrado em Comunicação e Cultura pela UFRJ já tinha relatado a realidade da comunicação radiofônica na mesma cidade. Foram muitas viagens ao arquipélago do Marajó e a paixão por Soure fez com que o carimbó se tornasse o pano de fundo para o projeto de Doutorado, também na UFRJ, com estágio sanduíche na Université Paris V, a Sorbonne.
Grupo Cruzeirinho |
Assim surge o livro que documenta 100 anos de memória sobre a prática do carimbó em Soure, a maior cidade marajoara. Divido em quatro dimensões, a Estética, a Comunicacional, a Ritualística e a Política, a obra traz relatos de campo nas falas dos mestres e mestras da vida sourense. “Vamos de Mestre Abelardo, no final do século XIX até os mestres mais jovens, como Talo, Anderson Costa, e ainda Chicão, Diquinho e Regatão, que estão na casa dos 50 a 70 anos, mas super ativos”, diz Marcello Gabbay.
Em 2013, a tese já tinha recebido o prêmio Clóvis Meira de Monografias, concedido pela Academia Paraense de Letras (APL). A pesquisa, construída com a colaboração de intelectuais marajoaras, como Amélia Ribeiro, Anderson Costa, Ronaldo Guedes, Cilene Andrade e Aílton Favacho, agora chega ao público em formato de livro.
O prefácio foi feito pelos orientadores do trabalho realizado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), os professores Raquel Paiva e Muniz Sodré, e o sociólogo francês Michel Maffesoli, que mantém uma forte conexão com Belém, já tendo orientado teses de Fábio Castro e do poeta João de Jesus Paes Loureiro – ambos pesquisadores da UFPA. Antes de ser lançado, alguns capítulos do livro foram publicados no exterior, como por exemplo, na revista científica “Revue Sociétés”, da França, e expostos em congressos em Portugal, Peru, Uruguai e Turquia.
Tendo a música e a comunicação como paixões impulsionadoras, Gabbay também realiza trabalhos de composição e instrumentação, além de produção de trilhas sonoras para teatro e o trabalho autoral com O Campo e a Cidade.
Holofote Virtual: Tens toda uma relação com a região, és daqui, trabalhastes em projetos de comunicação popular, o que levou a campo e em particular, a um projeto em Soure. Como foi que isso tudo te levou aos mestres de carimbó?
Marcello Gabbay: Pois é, sou totalmente daqui, né? Meu avô paterno nasceu no Afuá. Só me dei conta disso anos depois, já trabalhando em Soure, a amiga e poeta Angela Benassuly me chamou a atenção e disse: “Menino, tu és marajoara!”.
Entre 2003 e 2007 trabalhei na Embrapa de Belém, e foi lá mesmo que eu conheci a pesquisa, viajando pelos interiores, em dias de campo, uma época boa da agricultura familiar, quando o agronegócio era visto com todas as ressalvas possíveis, andei conhecendo a vida rural do nosso Estado.
Nessa mesma época, trabalhei com o grupo Novos Curupiras em Soure, no bairro do Tucumanduba, perto da praia do Pesqueiro. Andávamos por lá pensando no rádio como forma de comunicação popular. Foi uma época linda, de muito aprendizado.
Quando larguei tudo pra ir fazer Mestrado e Doutorado, sofria de saudades de Soure (risos). Na época do Doutorado, depois de cumprir os créditos e de fazer o estágio sanduíche na França, me enfiei em Soure de novo. Dessa vez, bibicletando (como eu gosto de dizer) atrás dos ensaios do Cruzeirinho.
Nessas andanças, os intelectuais sourenses me transformaram. Diquinho, Regatão, Ronaldo Guedes, Anderson Costa, Amélia Ribeiro, Aílton Favacho, todos estes e mais outros. Passei a estudar e tocar o banjo nesse período. O meu instrumento de origem, o contrabaixo, ficou excluído, tadinho, era estrangeiro demais pro “tempo marajoara”. Aí eu andava com o meu banjinho pra cima e pra baixo enquanto não estava em Soure. Por lá, preferia só aprender.
Regatão |
Holofote Virtual: E como foi o contato com os mestres?
Marcello Gabbay: Foi maravilhoso. Devo tudo ao Anderson Costa, um músico e estudioso do carimbó sourense, que hoje mora no Amapá. Ele estava atuando diretamente na articulação dos mestres Diquinho e Regatão em 2012, e me levou com ele pra todo lado. Foi um amigo muito generoso.
Foi ele também que me deu acesso às raras gravações do Mestre Biri, dos anos 1970, me mostrou o banjo do Mestre Cariri, guardado no ateliê do Ronaldo Guedes, no Pacoval. Enfim, andei na garupa de pessoas generosas que me botaram dentro dos espaços, com muito respeito e admiração.
Diquinho é um compositor deslumbrante. Está ativo e sempre produzindo, apesar de que ele não gosta de sair de Soure. “Sinhá Rosinha” é um carimbó-choro dele que está no último disco do Cruzeirinho, e que eu recomendaria como um lindo exemplo da beleza cancionista de Soure.
Praia do Pesqueiro, em Soure, inspiração para muito carimbó |
Holofote Virtual: 100 anos de carimbó é um recorte amplo. Como você trabalhou as fases históricas?
Marcello Gabbay: A história do carimbó no Marajó passa por três grandes etapas, a Era dos terreiros, quando era praticado nas fazendas e campos, de forma mais restrita; a Era dos conjuntos, quando, tendo vindo para as sedes das cidades marajoaras, o carimbó se constitui em conjuntos instrumentais influenciados pelo formato das big bands das rádios AM; e a Era dos grupos, que compreende os anos 1980 até hoje, marcada pelos grupos de dança que trafegam entre o atendimento aos turistas e a manutenção do antigo espírito dos terreiros em seus barracões de ensaio. É o caso do Grupo de Tradições Marajoara Cruzeirinho, um dos mais atuantes de Soure.
Holofote Virtual: O livro traz um rico material de pesquisa, dentro desse universo o que tu enfatizas para atenção dos leitores?
Marcello Gabbay: É claro que a parte histórica é mais interessante, né? Tomei o cuidado de escrevê-la de forma leve e fluída. Como num romance mesmo, sem muito quiproquó teórico.
Então essa deve ser a parte mais gostosa. Mas eu chamaria a atenção para a Dimensão Estética, onde eu defino a ideia de “comunicação poética” no contexto da canção popular. Aí está o cerne do livro. Além de definir aí a poética da canção como linguagem, tem também um subcapítulo que eu gosto muito sobre o “tempo marajoara”, que reflete a dinâmica do cotidiano como forma de resistência também.
Holofote Virtual: O carimbó marajoara tem características específicas? Na região do salgado se diz fazer um carimbó praiano. Há estas divisões?
Marcello Gabbay: Sim, dizem que temos o carimbó praiano do Salgado, o da cidade e o dos campos, no Marajó. Na verdade, muitos autores nossos, como o Paulo Murilo Guerreiro do Amaral, a Laurenir Peniche e mesmo o Vicente Salles, nos levam a crer que o carimbó possa ter surgido, ao mesmo tempo, em territórios afastados da região, derivado dos “batuques” (um termo genericista inventado para des-qualificar as músicas africanas).
Algumas das matrizes musicais, como as figuras rítmicas, melódicas e argumentos poéticos variam um pouco, porém. Em resumo: diz-se que no Marajó o carimbó é mais romântico, influenciado pelo choro e pelas big bands, com clarinete (uma herança direta do finado Mestre Biri, de Soure), e um banjo mais harmônico e menos surrado. As letras referem-se à nostalgia, às praias, à pesca, à vaqueirada e à mitologia e cosmologia marajoaras. São algumas das características distintivas mais marcantes. Mas no livro o pessoal vai ver isso melhor tratado (risos).
Grupo Cruzeirinho |
Holofote Virtual: Essa visão comunicacional do carimbó está nas letras, danças, estética. O que decifrastes de mais expressivo nessa poética?
Marcello Gabbay: Está na forma da canção, tanto quanto nas letras. É mais fácil identificar a poética marajoara nas letras, pelos recursos metafóricos, temáticas, narrativas, etc. Mas na canção também temos uma força comunicacional no tempo musical, nas estruturas rítmicas e melódicas.
Como exemplo, eu gosto de mostrar a canção “Açaizeiro”, do Vital Lima, que está no disco de estreia dele de 1978. Ali, ele canta que o açaizeiro morreu no Rio de Janeiro porque não se deu bem por lá; mas a palavra “morreu” é cantada em uma sétima menos descendente assim: “mô-rreu”, emulando a forma da nossa fala, fazendo dela expressão melódica, e fazendo da melodia musical uma fala culturalizada, marcada por aspectos afetivos e vinculativos do falar. É por aí. No livro tem muitas páginas sobre isso (risos).
Holofote Virtual: O IPHAN construiu um dossiê, em dez anos de campanha pelo carimbó como patrimônio cultural brasileiro. Você bebeu nesta fonte? Conhece esse material?
Marcello Gabbay: Sim! Tem um capítulo no livro, lá na Dimensão Política, onde trato dessa labuta da patrimonização. E em 2014 eu acabei contribuindo com o dossiê porque o pessoal achou que faltavam informações históricas sobre o Marajó. Eu estava vivendo em Petrópolis, e a Amélia Ribeiro, coordenadora do Grupo Cruzeirinho, me chamou pra enviar um texto, que eu mandei no ato! Lembro que quando o dossiê foi aprovado e tudo, houve uma festa em Belém, e eu ia, mas acabei tendo um compromisso acadêmico em São Paulo, que acabou me levando a morar nessa Babilônia; coisas da vida...
Tambores do Pacoval, com Diquinho e Regatão |
Holofote Virtual: E na sua visão que politicas existem hoje para o carimbó enquanto cultura viva e patrimonial do país?
Marcello Gabbay: Bem, ainda vamos ver os frutos disso em termos de políticas públicas. Na verdade, a vida dos grupos é muito dura.
O Cruzeirinho, por exemplo, virou Ponto de Cultura na época em que a gestão do Juca Ferreira no MinC ainda via essa ferramenta como uma forma de equipar os grupos locais. Hoje, está bem mais difícil. A realidade dos grupos do interior é bem diferente daqueles que trabalham na capital. Cada apresentação envolve um custo de deslocamento para vários músicos e dançarinos.
Não contamos com uma estrutura de apoio mais estável, que promova uma circularidade de recursos e que reconheça a realidade dos interiores. Cada viagem são quilômetros de rios, estradas, pernoites. Há tempos que os artistas do Norte têm batalhado pelo reconhecimento do que chamamos de “custo amazônico”. A Funarte, por exemplo, vinha caminhando no sentido de reconhecimento de nossas necessidades, mas agora estamos novamente à própria sorte.
Holofote Virtual: Isso é preocupante, porque fora das festividades, que já são feitas com dificuldades, esta cultura está ameaçada. O que precisa ser feito?
Marcello Gabbay: O que eu acredito é que existimos apesar de tudo. Mas é como diz a Amélia Ribeiro no livro. “Vem por amor? Vem.
Mas se não tiver apoio vai acabar”. Ela se refere ao tipo de trabalho que o Cruzeirinho faz, de preservação da memória, de formação cultural dos jovens e produção artística do grupo, que envolve crianças, pais, mestres mais idosos, intelectuais locais e a cidade.
O mercado cultural até que caminha junto ao novo modelo de patrocínio capitaneado pela Natura, por exemplo; mas os grupos culturais trabalham numa outra lógica. Não podemos deixar de cobrar do Estado um tipo de amparo e cuidado para com estes grupos, para que não desapareçam no imbróglio da lógica do mercado do streaming, por exemplo.
Holofote Virtual: Estás morando em São Paulo, o que tens feito tanto academicamente, quanto artisticamente por lá?
Marcello Gabbay: Eu estou trabalhando em uma faculdade aqui. 2017 foi produtivo, na verdade. Continuo escrevendo e pesquisando sobre comunicação e canção popular. Fiz um texto sobre o Rincon Sapiência pra revista da faculdade aqui, e tenho orientado Monografias nessa área também. Semestre que vem, vamos ter um trabalho interessante sobre “afrofuturismo” na música brasileira.
Eu também estudei Musicoterapia, terminei no início desse ano. Minha Monografia tratou da canção popular como forma de expressão terapêutica. Também passei a tocar com o Antônio Novaes aqui no Clarimbó. Fazemos muito paulista dançar!!! (risos). Eu sempre quis tocar com o Novaes porque gosto de tudo que ele faz, agora estamos nessa labuta boa.
Já O Campo e a Cidade finalmente lançou um álbum esse ano. Se chama “Tarot” e traz 11 faixas. Foi um ano de muito trabalho, montamos uma banda pra engrossar o som, fizemos um lançamento lindo em agosto e estamos produzindo uma série de vídeos para apresentar as faixas do disco.
Na verdade, já vem aí um disco novo! Mas nosso último feito foi o lançamento do clipe de “La Belle Époque”, uma canção-blues que se inspira muito nas andanças entre Belém e Soure. O clipe foi dirigido por nós e pelo Wallace Rosa, um jovem videomaker daqui de SP.
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