2.7.22

Edir Gaya lança álbum digital com show no Boiúna

Caiu hoje nas plataformas digitais da música, “Liamba Jazz & Samba", álbum de estreia de Edir Gaya, que o lança, neste sábado, 2, com um show, a partir das 22h, no Espaço Cultural Boiúna. Estará acompanhado por Renato Torres (direção, guitarra e vocais), Antonio Abenatar (sax), Jonatas Gouveia (contrabaixo) e Rodrigo Ferreira (teclados). A seguir, texto especial aqui no blog! 

Por Edson Coelho

Nem sempre um disco é a cara do autor e, nem sempre, o autor é a cara de uma cidade. “Liamba Jazz & Samba", é a cara de Edir Gaya e o Gaya é a cara de Belém. Por isso esse texto é tão pessoal e constituído com histórias.

Uma história que resume o disco foi em Algodoal, uns 16 anos atrás: na pousada de um francês, vários franceses como hóspedes, alguns músicos crias de conservatório. Chegamos, eu e o Gaya, com o violão, pedimos cerveja. O Gaya tocou “Liamba", que fizera sobre o poema do Bruno de Menezes. Um francês do conservatório comentou, encantado: “Eu jamais poderia fazer acordes desses". Quis dizer: tais acordes não se ensinam em conservatórios. E disse, principalmente: jamais me ocorreria ir por aí.

O Gaya veio das ruas. Matinha, Pedreira, Sacramenta, Guamá, Jurunas. Ruas de periferia: “Meu disco vem da estética das ruas inaugurada pelo Bruno de Menezes". 

Olha isso: Bruno é o introdutor do modernismo na Amazônia. Fez revista modernista antes do Drummond em Belo Horizonte. Entendeu a pintura de Anita Malfatti muito mais que Monteiro Lobato e a intelligentsia sudestina da época. Nessa esteira, veio Tó Teixeira, o cara do violão que dividiu com Bruno as bancadas da encadernação, os dois adolescentes. Aí chegou o David Miguel, compositor irreprimível. E depois de tudo passar por Vavá da Matinha, surgiu o Edir Gaya, que, parafraseando Caetano sobre a bossa nova, retomou a linha evolutiva da cultura periférica de Belém. Não apenas aqueles acordes, que o francês conservador não imaginava. Também pelas palavras.

Fotos: Raimundo Paccó
O Gaya ama romances longos. Tolstoi, Thomas Mann e, principalmente, Dostoiévski. Os contextos, os painéis. Os detalhes (como o quintal que tudo contém do Tolstoi). A sociologia e a história.

Os acordes estão nas melodias de primeira qualidade, variações do samba à balada, do samba de breque ao bolero e à individualidade que marca as melodias da MPB. Pelas mãos dos melhores músicos, com produção de Renato Torres. No show desse sábado, lançamento do álbum, o time já é uma goleada: Edir Gaya (voz e violão), Renato Torres (direção, guitarra e vocais), Antônio Abenatar (sax), Jonatas Gouveia (contrabaixo), João Paulo Pires (bateria) e Rodrigo Ferreira (teclados).

E as melhores palavras: a poesia, a História, a sociologia. Entre as 15 músicas de “Liamba...“, nove são com letras mestras de Raimundo Sodré, Cacá Farias, Edson Coelho, Ribba, Renato Torres e Walter Freytas. Há ainda “Manuela”, de Carmélio Gaya, pai de Edir, e o clássico “Desgosto", do patrimônio cultural Vavá da Matinha. As demais são do próprio Gaya.

Alguns versos já ilustram a excelência da poesia: “ela não vê que o bandido/nada lhe pode roubar/está preso num gemido, ai/não galopa à beira-mar” (“Portal", com Walter Freytas); “olhem como morro há muitas luas/nas terras dos meus pais, nas avenidas nuas/cruas de tanto silêncio, eu lembro/a gente não era assim tão arisco/desbravávamos pradarias, correndo todos os riscos/que a vida não negou” (“Calmaria", com Ribba); “chegávamos juntos/o caminho lá na frente/veio bicho, veio gente/só séculos depois/se inventaria o lixo atômico/o cérebro eletrônico/soro anti-tetânico/as fardas, os muros, as divisões” (“Povo daqui", com Cacá Farias).

Crônicas e narrativas das quebradas 

“Perifeérico", sobre poema de Renato Torres, se encaixa direitinho em Gaya e no disco: primeiro, o periférico feérico, a agitação, a inquietação; depois, os versos em si, como nessa mostra: “cravada na pele, feria/a maquinaria/da lira incontida/a destemida periferia do incriado". Tipo aqueles acordes “incriados” em Algodoal.

Sim, o disco é a cara da Belém das quebradas, basta ouvir: “a Rádio Marajoara anunciou/que na Pedreira tem batalha de confete/e já se ouve a bateria do Tombo/ensaiando no compasso do coração” (“Samba pra Julião", personagem clássica da Pedreira e seu famoso bloco Aguenta o Tombo, letra de Raimundo Sodré); “Na Pedreira a noite chega/Com o vento dando fagueiro/Serelepinho pelos corredores/E passagens escondidas...  Na Pedreira ao entardecer/As meninas passeiam/Pelos canteiros da Marquês” (“Pedreira jazz Pedra 90", também com Sodré).

É nas letras do próprio Gaya, jornalista de responsa, que “Liamba Jazz & samba” se torna diretamente a Belém das quebradas. Você sabia que Belém já teve um morro? “Derrubaram o morro da matinha/Recortaram as florestas que enfeitavam os quintais/Plantaram esquisitos edifícios no lugar/Deram outro nome para a Barra/Vão querer tirar na marra a Matinha de onde está” (vê-se que a planta do mato virou a planta dos prédios, em “Romance na Barra”). 

Sabia que a Matinha, hoje o bairro de Fátima (contra a vontade dos moradores originários), era um lugar barra-pesada? “Matinha/minha imperatriz do subúrbio/Subitamente invadida, tomada de assalto/Pavimentada de asfalto/De concreto e medo” (viu que, para os pobres que resistiram à “higienização” social, o asfalto é que virou medo, em “Restos”?). Também nesta letra, a citação ao ídolo Doistoievski (“Mocinhos bandidos/*Crimes & castigos*/Sangue aos vampiros/Da crônica policial”.

Entre personagens e lendas urbanas de Belém

O disco, definido por Gaya como “cartografia do afeto, geografia da memória”, reaviva personagens, ou mitos, da Matinha, como Deusu, estigmatizada como traficante e que ganha o status de “mercadora de sonhos”, “que eu compro/quando quero a certeza”. 

Outra personagem é Diamantina, sacerdotisa afro-brasileira (como Deusu, negra), além do próprio Vavá da Matinha, de quem Gaya regravou “Desgosto”. É com Vavá, aliás, que se vive mais uma história para pontuar esse texto: certa vez, eu, o Gaya, o cartunista JBosco, o jornalista Euclides Farias e o diagramador Luiz Waldemir Santos nos reunimos para entrevistar o Vavá na gloriosa Escola de Samba da Matinha, numa quarta-feira de Cinzas, e a entrevista acabou numa farra que varou em Castanhal, depois de milhares de cervejas (o Gaya não foi porque teve que escrever a matéria).

Essa Matinha da memória, que não consta da história “oficial” dos “vencedores” de Belém, ganha versos de uma beleza realmente improvável como em “Romance na Barra”: “Romântico é te namorar na Matinha, Lerinha,/Agora que não há mais crimes/E, se o medo adormece debaixo do asfalto,/O salto no escuro fica até mais seguro morro abaixo.../Não pense que eu te esqueci”.

O disco segue por bairros como a Pedreira, ao contar a “História verídica do malandro que se exilou na cidade da Vigia por motivos óbvios” (o óbvio é que o seu Mourão, delegado famoso, queria dar um fim ao malandro, “e eu nem sei se ele merece minha consideração”). 

Sim, o disco é cara do Gaya e merece outra citação, da jornalista Simone Romero, lembrando a risada estrondosa do cara na redação, “a risada dele já fazia parte do nosso dia a dia ali”, risada de Belém, risada de Tó Teixeira e David Miguel, riso que desestigmatiza como o humanismo com que Bruno de Menezes trata a “Liamba” no poema que Edir musicou e que deu nisso tudo: “Embriaga teu homem pobre/Quem teria ensinado que teu fumo faz dormir?/... Amoleces o corpo cansado do negro/... Na maloca/ Na senzala /Nos porões, nas usinas/... Porque quando ele te fuma/É com vontade de sonhar”.

Que tal outra história, pra selar? Certa vez, trabalhávamos na TV Cultura, o Johnny Alf participou do Sem Censura e, na saída do estúdio, lá estava o Gaya com o livro do Ruy Castro “Chega de saudade”. Não lembro se o Edir se ajoelhou, mas o Alf autografou com evidente prazer.

Serviço

“Liamba Jazz & Samba”, disco em todas as plataformas (distribuído pela Quae), show de lançamento na noite deste sábado, 2, no Boiuna – Trav. Pariquis, entre Padre Eutíquio e Apinajazz. A partir das 22h. O disco também está disponível em todas as plataformas digitais da música. 

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