17.11.15

"Órfãos do Eldorado" filma a estética do imaginário

Daniel OLiveria e Guilherme Coelho
Adaptar Milton Hatoum, embora ele nos sugira imagens cinematográficas em suas narrativas, não parece ser tarefa lá muito fácil, mas foi o que o diretor, roteirista e produtor carioca Guilherme Coelho fez, ele adaptou o romance “Órfãos do Eldorado”, escrito em 2008, para o cinema, realizando o primeiro longa de ficção de sua carreira, que sempre foi mais voltada ao documentário. O resultado nos remete a um imaginário atuante e de poética visual, além de uma adaptação brilhante, que fazem do filme, um dos melhores já realizados, tendo como pano de fundo a Amazônia, só que mais... Esqueça os clichês. 

O filme acaba de estrear no circuito comercial, mas a sessão de pré-lançamento, em Belém do Pará, no dia 9 de novembro, numa sala do Cinépolis, ainda está na retina. Foi lotada e emocionante. Concorida. Na trama tem abuso sexual e incesto, que são revelados de forma silenciosa, por pequenos gestos, mas também por cenas repletas de sensualismo e nudez. 

E também fala de desejo e vingança, fala de injustiças sociais e abuso de poder, fala de solidão, ódio e amor. Os conflitos familiares que marcam os romances de Hatoum, estão presentes. O autor também aparece no filme, já numa sequencia final, mas simbólica. E tudo isso em meio a uma fotografia transgressora do tempo, favorecida pela montagem, que nos leva pra dentro daquela história.

Cena tensa, com Daniel Oliveria e Dira Paes
O par protagonista é Dira Paes e Daniel de Oliveira. No elenco, ainda, uma constelação de paraenses, como Henrique da Paz, Adriano Barroso, Natal Silva, Paulo Fonseca, Milton Santos de Jesus e Cleodon Gondim, entre outros atores e profissionais que também atuaram na produção local do filme.

O público que não conseguiu cadeira, sentou-se na escada, uma não prática da direção do cinema, que naquele momento teve que se dobrar ao desejo do público de ficar e assistir o filme. “Foi uma ótima surpresa ver o interesse das pessoas no livro do Milton, no nosso filme, no trabalho dos atores. Estou realizado. Mostrar o filme em Belém, e ser recebido como um filme ‘de’ Belém, é uma das melhores coisas que eu poderia querer”, ressalta o diretor Guilherme Coelho.

A trajetória de Arminto Cordovil (Daniel Oliveria) e Florita (Dira Paes) em Órfãos do Eldorado, levou 30 dias pra ser filmada e mais de um ano pra ser finalizada e chegar ao lançamento. Rodado no Pará, o filme foi teve  a maioria das cenas na capital e Icoaraci. Nos quatro últimos dias, ainda imprimiu toda a beleza das pequenas praias e ilhas situadas no Arquipélago das Anavilhanas, no Rio Negro.

Belém, em primeiro plano

Mariana Rios, uma das cenas com Daniel
“Pesquisamos também filmar em Óbidos, Bragança, Parintins e Itacoatiara. Mas eu tinha, e tenho agora ainda mais, uma relação afetiva com Belém. Belém é a musa do filme. Belém nos vestiu com a sensibilidade que precisávamos pra encarar a responsabilidade com a obra literária do Milton (mas também do Dalcídio Jurandir), e honrar a tradição das artes visuais do Pará. Todos nós, equipe e elenco, saímos transformados do filme, e Belém é a grande responsável por isso”, diz Guilherme Coelho, entusiasmado.

Todo este entusiasmo é de se entender melhor ainda ao saber que Guilherme Coelho tem raízes paraenses. O diretor disse que já tinha vontade e era um sonho antigo filmar no Pará. “Meus avós são paraenses. Ou melhor, minha avó é paraense, e meu avô tem ‘do Amazonas’ no sobrenome – mas cresceu em Belém. Eu nunca tinha ido a Belém, ou ao Norte, até oito anos atrás quando fui fazer um documentário pra ONG de educação da Bia Cardoso, num projeto dela em Paragominas”, conta Guilherme Coelho, que ainda esteve por três dias em Belém pra pesquisar sobre a vida de seus avós.

“E me apaixonei. Amor mesmo. Eu amo Belém, amo as conversas sobre livros que se têm nas esquinas, a tradição da fotografia paraense, a comida, a música, os amigos que eu fiz e que nestes últimos oito anos me fizeram ser quem eu sou”, comenta.

Desde o lançamento até aqui, Guilherme Coelho não parou. Já deu inúmeras entrevistas, participou de debates realizados nas estreais do filme em festivais no Rio de Janeiro, entre outros compromissos, que estão impulsionando a carreira do filme.

“A repercussão tem sido ótima pra mim, pois tenho visto que o filme continua com as pessoas, dias depois de assisti-lo, e que a história do filme é completada pela imaginação dos espectadores. Isso no Rio, em Varsóvia, em Chicago, em São Paulo e agora, de volta às origens, em Belém também”, disse o diretor ao Holofote Virtual, entre outras coisas que você lê a seguir.

Daniel Oliveria filma em um bar na Cidade Velha
Holofote Virtual: O roteiro funde personagens e omite outros para livremente trabalhar a profundidade das personagens Arminto e Dinaura, ela uma peça fundamental na história. Fala um pouco sobre este processo de adaptação do livro para o roteiro, como fostes enveredando pelas opções eleitas para a tela.

Guilherme Coelho: Pois é, o processo de adaptação não foi fácil. Acho que mais importante que entender qual história contar, os realizadores de cinema devem hoje pensar como contar qualquer história. Em ÓRFÃOS, o “como” para influenciou muito o “o que”. Descobri cedo no processo que o caminho para trazer às telas o lindo livro do Milton seria ter liberdade para criar uma narrativa sugestiva, que nos permitisse filmar, atuar e assistir ao filme com subjetivação.

Eu queria deixar que a espectadora completasse a história do filme, com suas fantasias e vivências. Acho que hoje no cinema não se trata mais em falar de “finais abertos”, mas sim em “filmes abertos”, com múltiplas entradas para os espectadores. Assim, o filme continua na cabeça de cada um, de diferentes maneiras. A experiência estética me parece mais interessante, tal como um bom livro que completamos com nosso imaginário, ou uma instalação de arte contemporânea.

Adriano Barroso e Guilherme Coelho, pré-estreia em Belém
Holofote Virtual: Você trabalhou com atores incríveis, citando os daqui, temos Henrique da Paz e Natal Silva, que estão muito bem, assim como Adriano Barroso, ator que já acumula uma experiência e segue atuante no cinema, mas também com Cleodon Gondim, velha guarda do teatro e jornalista, e ainda um elenco com pessoas necessidades visuais. Como foi tudo isso?

Guilherme Coelho: Só a Dira podia falar Florita. Só o Daniel de Oliveira tem a doçura e a loucura pra viver o Arminto. A Mariana Rios foi uma descoberta maravilhosa pra mim, e levou o filme pra outro lugar. O Adriano Barroso foi das primeiras pessoas que conheci em Belém, e escrevi o papel pra ele. O personagem dele no filme é uma fusão de três personagens do livro. Natal, Henrique da Paz, Paulo Fonseca, Cleodon, Milton Aires, Luciana Borges, Keila Gentil, Paulo Sergio Farias e até o Milton Hatoum. Estes foram o sal da terra do filme. Atores de teatro e cinema do Norte do país, que me ajudaram a conjugar a segunda pessoa do singular de maneira correta, e deram ao filme uma autenticidade na atuação que nós buscávamos.

Hatoum e Guilherme em debate do filme no Rio de Janeiro
Holofote Virtual: A primeira cena na praia é surreal. Vira e mexe ela se repete ao longo da história. Quais foram suas referências para construir esta sequência, ela é muito emblemática, ficou na minha cabeça...

Guilherme Coelho: Essa cena é especial por ter sido atuada de maneira vigorosa pela Dira Paes, com enigma pela Mariana Rios, e com candura pelo jovem Arthur Codeceira. A luz do Adrian Teijido, no final de uma tarde que choveu cântaros, e a arte da Marghê Pennacchi criaram a atmosfera, algo além do real. E finalmente, os cortes descontínuos da montagem da Karen Harley deram à cena uma sintaxe de sonho. E eu espero que, em sonho, o espectador continue relembrando o filme.

A sequência de abertura está no livro de maneira muito parecida com o que temos no filme, o que é uma felicidade pra mim. O Milton nos deixou tão livres para criar uma outra obra, a partir da obra dele, que eu fico feliz que a primeira cena do filme, a cena que tenta nos colocar em outro tempo e espaço, seja tão fidedigna ao livro.

Holofote Virtual: O filme trata de conflitos familiares, de abuso sexual, amor entre irmãos. O final sugere rendenção, ou pior um novo ciclo para a mesma história, enfim,  deixa o público meio atônito (risos). Sempre foi este o desfecho escolhido pelo roteiro ou o filme foi te mostrando o caminho?

Guilherme Coelho: A adaptação foi nos levando pra uma redenção pra esta história, que pode ser encarada como uma tragédia. Mas tragédias não tem redenção, então... A cena final, assim como a cena de abertura do filme, são muito parecidas com o que o Milton descreve no livro. Mas no filme, o final tem uma personagem que não está no livro, e que muda o sentido da história – e a vida do Arminto.

Elenco paraense reunido na pré-estreia em Belém
Holofote Virtual: O longa já está no circuito comercial. Como enxergas este universo da distribuição, hoje, no Brasil, com salas digitais, isso facilitou a vida do produtor e para a carreira dos filmes brasileiros?

Guilherme Coelho: Eu acho um enigma a distribuição e exibição de cinema. São tantas variáveis que contribuem para a venda de ingressos, que eu prefiro não pensar muito nisso e trabalhar pra fazer o melhor que eu posso em cinema artesanal – um termo que eu acho melhor que “autoral”. Eu só sei que o modelo econômico deste cinema artesanal, de arte, independente, está em crise no mundo inteiro. Mas não tem jeito, temos que continuar fazendo cinema, e cinema como laboratório da vida. Assim, a arte vence o mercado.

Holofote Vitual: Órfãos do Eldorado, teu primeiro longa de ficção. Um desafio? 

Guilherme Coelho: Eu fiz documentários nestes últimos 15 anos, e espero em breve voltar a fazê-los. Documentários de cinema direto, e de cinema de encontro, de entrevistas. Filmes ligados ao realismo, ao naturalismo. O grande desafio pra este projeto do ÓRFÃOS foi como conceituar um filme estilizado, com estranhamento, que depende de uma construção de uma atmosfera, de um clima. E isso é feito com a direção de arte. 

Os meus amigos Marcelo Gomes e Marcos Pedroso, e a diretora de arte, Marghê Pennacchi me ensinaram muita coisa, e eu adorei a experiência. Ficção é sobre nós. Documentário é sobre os outros. Mas não acredito que exista tanta diferença entre os dois gêneros. Acredito é que temos que aproximar a ficção do documentário e o documentário da ficção, como Godard definiu o melhor cinema.

Holofote Virtual: A estadia aqui na região te inspira a outros trabalhos?

Guilherme Coelho: O único problema de filmar na Amazônia é que quando acaba a produção, só lhe resta a Islândia, a Patagônia, a Nova Zelândia e talvez Galápagos. Rs. Eu quero me encantar de novo por uma geografia. Mas eu prometi aos meus filhos que o próximo filme seria no Rio, pra eu não ter que viajar tanto. Vamos ver se eles se lembram dessa promessa. 

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