20.8.23

Exposição abre com acervo do Teatro Cena Aberta

"Teatro Cena Aberta - Memória da Cena Paraense" traz à público parte significativa da trajetória de um dos grupos mais importantes e também polêmicos da história do teatro paraense. A abertura será nesta próxima quarta-feira, 23, às 19h, no Teatro Nazareno Tourinho – Praça do Carmo. A realização é do Instituto Maré Cheia – IMARÉ. A seguir um papo com Margaret Refkalefsky e Cezar Machado, que integraram o TCA e estão na equipe do projeto

O Cena Aberta foi um dos mais importantes grupos do teatro contemporâneo do estado. Formou pelo menos duas gerações de artistas e segue influenciando outras. Para quem ainda não conhece essa história ou para quem costumava ir aos Festivais de Teatro Amador, em Belém, no final dos anos 1980, a exposição promete surpreender.   

O projeto parte do acervo organizado durante 16 anos por Luiz Otávio Barata, um dos fundadores do grupo. São fotos, documentos e cartazes e programas, dos 23 espetáculos realizados entre 1976 e 1991, além de vídeos com entrevistas de atores e depoimento de pesquisadores. Um QRcode em cada painel leva o visitante da exposição a  mais informações num site.

“O público vai ver um recorte desse acervo. Luiz Otávio Barata recortou cada reportagem, cada foto, programa, certificados da censura. Quando decidimos fazer o projeto, até para preservar esse acervo, tudo sobre cada um dos espetáculos já estava rigorosamente catalogado por ele”, disse Margaret Refkalefsky, em entrevista ao Holofote Virtual.

Pioneirismo, inovação e contestação

O Quarto de Empregada
Cenário de Luís Otávio Barata
De cunho contestador e influenciado pelas obras de Jean Genet, Santo Agostinho, Friedrich Nietzsche e Flávio de Carvalho, entre outros autores, o TCA - é pioneiro em vários aspectos. Foi um dos primeiros grupos a interferir na estética espacial de suas encenações.  

“O Quarto de Empregada”, encenado no Theatro da Paz, em 1976, é um exemplo disso e um verdadeiro feito. Onde pouquíssimos grupos locais tinham acesso na época, o TCA chegou causando espanto, admiração e polêmica.

“Não havia separação entre palco e que eu saiba ninguém havia até então rompido as limitações do fosso do Theatro da Paz, onde a arquitetura impunha sua força num teatro de palco à italiana. Começa que a plateia era convidada a vir para o palco, junto com os atores e tudo se passava no mesmo espaço”, lembra Refkalefsky. 

Zélia Amador de Deus

O grupo também trazia à cena questões sociais e de gênero. Invertia papéis numa tentativa de tirar a venda dos olhos do preconceito. 

"O Quarto de Empregada" conta a história de duas amigas, uma preta, interpretada por Margaret, que é uma mulher branca, e outra branca, interpretada por Zélia Amador de Deus, que é uma mulher preta.  

“A importância do Cena Aberta passa muito por aí. As pessoas iam ao teatro sabendo ou esperando por algo inovador, crítico. Nossos espetáculos traziam reflexão, crítica social, resistência política, questionavam a postura da sociedade”, observa Refkalefsky. 

O projeto "Teatro Cena Aberta - Memória da Cena Paraense" conta com Margaret Refkalefsky e Cezar Machado, que conversa a seguir com o blog e também foi do Teatro Cena Aberta, e com Elaine Oliveira, Marcilio Caldas Costa, Wladimir Moura, Cláudio Didimano e Nonato Moreira, do coletivo do IMARÉ.

Teatro como resistência num país sob a Ditadura

Zélia e Margaret, final dos  anos 1960 
Escola de Teatro da UFPA
Fazer teatro no final dos anos 1960 era mais do que focar numa profissão na área das artes, era o meio pelo qual muitos jovens encontraram para discutir temas que foram proibidos de serem abordados até mesmo dentro das universidades.

“Eu entrei para a Escola de Teatro da Ufpa, em 1969. Nós tínhamos tido um ano de 1968 muito agitado, no final veio o AI-5 e ficamos numa situação mais complicada ainda como estudantes engajados que éramos. Eu achava que o teatro poderia ajudar a gente a questionar, inclusive toda a perseguição que já sofríamos. O teatro era como se fosse uma porta que se abria pra gente discutir e questionar a realidade, manter o engajamento político”, diz Margaret Refkalefsky.

É influenciado por esse anseio de liberdade e resistência que surge o Cena Aberta, em 1976, no Brasil sob a Ditadura Militar. Fundado por Margareth Refkalefsky, Zélia Amador de Deus, Walter Bandeira e Luiz Otávio Barata, jovens politicamente engajados, a ideia era trabalhar com o teatro para sensibilizar e tocar as pessoas, dando-lhes um choque de realidade.  

Margaret Refkalefsky, do Teatro Cena Aberta
“Não que a gente pretendesse fazer uma revolução, mas queríamos que o teatro discutisse a realidade, abrisse a cabeça das pessoas para aquela realidade que estávamos vivendo. Tínhamos preocupação com a formação de plateia, com o uso dos espaços. O Cena Aberta se apresentava em teatro, praças, centro comunitário, onde quer que fosse chamado”, continua.

No palco, tratavam de forma inteligente e contundente, o que não podia mais ser dito nem mesmo dentro de casa. O grupo viveu restrições, mas resistia em manter sua postura de crítica social e política. Os textos encenados vinham da dramaturgia brasileira e de clássicos da dramaturgia mundial, mas nada disso ia para o palco sem antes passar pelo rigor da Censura, uma "senhora" que estava sempre na plateia, à espreita.

“Os textos todos passam antes pela censura, iam para Brasília, voltavam, depois a função da censura em Belém era ir ver se tínhamos respeitado os cortes do texto. E quando os cortes se mantinham, ainda assim, depois de assistir às estreias eles cortavam coisas como figurino, postura do ator em cena. Era uma censura rigorosa. As primeiras cadeiras eram reservadas à censura”, conta Margareth. 

A Trilogia do Corpo, do Amor e da Paixão

O Cena Aberta encerrou a carreira em 1992. Entre 1987 e 1991, montou Jean Genet, O Palhaço de Deus, Posição pela Carne e Em Nome do Amor. Polêmicos e divisores de água no teatro paraense, eles ficaram conhecidos como Trilogia da Paixão, Trilogia do Amor e/ou Trilogia do Corpo. Sobre essa fase, conversei com o arquiteto Cezar Machado, que é também ator e integrou o Cena Aberta entre 1987 e 1991, dirigindo, inclusive, o último espetáculo do grupo, naquele ano. 

“Os espetáculos dessa trilogia tratavam da questão da sexualidade e causaram polêmicas pois colocavam o corpo em evidência, algo que já havia sido experimentada em espetáculos anteriores, como na peça ‘Theasthai Theatron’, de 1983", observa Cezar Machado. 

Dirigido por Zélia Amador, a peça explora a expressão poética sexual do corpo nu, com os atores e atrizes despidos no palco se relacionando pelo toque. A peça foi, naquele início dos anos 1980, censurada. O grupo refez a montagem e reestreou com os atores cobrindo as regiões expostas com tapa-sexos. 

Houve um hiato depois disso e, em 1987, veio "Genet, O Palhaço de Deus", baseado na obra do escritor e dramaturgo francês Jean Genet. "O processo de criação foi coletivo. O Luiz Otávio selecionava textos e os distribuía aos atores que se dividiam em grupos e apresentavam sua versão das cenas. A partir daí, ele ia montando", continua Cezar.

O grupo Teatro Cena Aberta
Já o espetáculo "Posição Pela Carne", baseado no texto do  Antonin Artaud,  chamado Heliogábalo ou o Anarquista Coroado, mexia com diversas temáticas da sexualidade, inclusive a questão de gênero. 

"O protagonista usava peruca, depilava a perna. E também utilizava-se do corpo como um instrumento de poder. Seduzia, promovia bacanais, corrompia políticos, prostituía-se pelos corredores dos palácios, tinha relação incestuosa com a mãe. Dos três espetáculos da trilogia, ao meu ver, é o mais agressivo em relação ao corpo e a sexualidade”, considera Machado.

O terceiro espetáculo dessa trilogia, “Em nome do amor”, era inspirado nos textos Apócrifos do Novo Testamento, também conhecidos como "evangelhos apócrifos", uma coletânea de textos, alguns dos quais anônimos, escritos nos primeiros séculos do cristianismo, mas vetados pela igreja católica. 

Imaré - coletivo reunido para pesquisa

“Esses evangelhos não eram considerados verídicos, mas muitos deles falavam da vida de Jesus, como uma vida normal, mais humana, inclusive afirmando que entre ele e Maria Madalena havia uma relação de homem e mulher, e o espetáculo mostra isso. E uma das cenas mais aplaudidas era quando Maria Madalena, interpretada pela atriz Olinda Charone, declarava seu amor a Jesus”, diz Cezar, que interpretava Jesus.

“Era um espetáculo muito bonito. Tinham textos do Roland Barthes sobre o amor. Dos três espetáculos, plasticamente, pensando em figurino e tudo, era o que eu mais gostava, mas fizemos uma única temporada, de 15 dias, apenas dele, e mesmo assim, junto com "Genet...", é um dos espetáculos mais lembrados pelo público. Fez muito sucesso”, finaliza.

O último espetáculo do Cena Aberta, foi A Mulher Dilacerada, que estreou em 1991, com direção de Cezar Machado. Trazia como protagonista a Margareth Refkalefsky, e direção de Cezar Machado para o texto cujo nome original é Mulher Desiludida, de Simone de Beauvoir, livro publicado em 1967, reunindo três histórias independentes. 

Homenagem e reconhecimento

Anfiteatro da Praça da República
Ao acessar o projeto é impossível que a gente também não se remeta às historias de Luiz Otávio Barata, que faleceu em 2006, em São Paulo, aos 63 anos, às vésperas de retornar a Belém, onde iria dirigir 'O Laquê', peça produzida pelo grupo Cuíra, e também às memórias de Walter Bandeira, que também fundou o Teatro Cena Aberta, entre tantas outras cenas que ele desbravou, partindo três anos depois, aos 67, em junho de 2009, em Belém. 

Realizado com apoio de emenda parlamentar do então deputado federal e hoje prefeito de Belém, Edmilson Rodrigues, o projeto além de dar acesso público a este acervo e homenagear aqueles que já se foram deixando seu legado à cultura, reconhece ainda a contribuição de todos os demais que escreveram com o Cena Aberta, um capítulo revolucionário da história do teatro paraense. 

Ainda há muito que o coletivo Imaré deseja realizar, como um livro e um documentário com as entrevistas gravadas, além de uma exposição ampliada, dada a riqueza do acervo, que conta com mais de 700 fotografias, cartazes, croquis de figurino e de cenários. 

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