24.4.20

Convite a ficar em casa com os mitos da Amazônia

Artistas e fazedores de cultura que se habilitaram na última fase Festival Te Aquieta em Casa, edital emergencial lançado pelo Governo do Estado, por meio da Secult, aguardam o resultado agendado para a próxima segunda-feira, 27, quando a lista definitiva dos 260 premiados será publicada no Diário Oficial do Estado. Entre eles está Ângelo José de Castro Fonseca, ou simplesmente Ângelo Saci, ou melhor, Mestre Saci, reconhecido assim, em 2018, pelo Prêmio de Culturas Populares Selma do Côco, criado pelo antigo Ministério da Cultura.

Artesão de bonecos já muito conhecido, principalmente por quem frequenta os eventos públicos em Belém do Pará, Mestre Saci está concorrendo no #FestivalTeAquietaEmCasa com um vídeo que, para mim, independente do resultado, já é um prêmio para quem é atento ao fazer da cultura popular. Além de bonequeiro, ele também é contador de histórias e fez uso de mais este talento para contar o “Aniversário de Seu Pequeno”, que concorre à premiação de difusão, cujo valor é de R$ 1.500,00. 

Para entender o video é bacana explicar que Seu Pequeno é encarnado pelo próprio Mestre Saci em suas andanças pela cidade. A história desse personagem começa quando ele é procurado pelos seres dos rios e da floresta para que os ajudassem a pedir que Nossa Senhora de Nazaré protegesse a natureza, onde eles vivem. E a maneira que ele encontrou foi confeccionando bonecos que trouxessem a imagem de cada ser, levando-os assim até a imagem da padroeira do Pará.

No vídeo vemos o bonequeiro, habitante ribeirinho do Baixo Amazonas, relembrando um aniversário inesquecível. Agradecidos pela missão cumprida pelo bonequeiro, Curupira, Matinta Pereira, Mapinguari, Ataíde, Jurupari, Boto, Iara, entre outros, vão chegando a festa de aniversário de Seu Pequeno, trazendo vários presentes. Na contação, o rico vocabulário de Mestre Saci revela costumes, iguarias, segredos de cura, paisagens e modos de ser e de falar do caboclo amazônico, tudo de forma extremamente comprometida com a mitologia de cada personagem. Uma verdadeira aula de cultura popular. Vou deixar o link no final do texto para vocês irem direto à página dele, no Facebook, para conferir.

O vídeo foi feito com uma equipe que envolveu outros fazedores e profissionais da cultura. A fotógrafa Ursula Bahia, vizinha de Saci, na Cidade Velha, fez câmera, cenário e outras utilidades, além da direção, uma facilidade que só ela tinha para fazer, com segurança, em meio a pandemia, já que mora em frente, na sua casa galeria, o Atelier Jupati, tendo ainda a assistência de direção da artesã Silvia Mendonça. 

A edição é de Afonso Gallindo, um dos mais aguerridos produtores do audiovisual paraense; e a produção, de Maria Christina. “Foi tudo muito rápido, tínhamos poucos dias. Saci passou noite em claro decorando o texto, criado por ele mesmo, que já traz consigo esse saber da cultura popular”, me contou a produtora, por telefone esta semana.

Trajetória mergulhada na pesquisa e no fazer popular

Também conversei por telefone com Mestre Saci, nativo de Alenquer, filho de artesão e sapateiro, com quem aprendeu a tecer arte com as mãos. Saiu de seu município muito cedo e depois de uma breve passagem por Belém, nos anos 1970, chegou à Bahia, onde se especializou em dança e aprendeu com os baianos a valorizar a sua própria cultura, a paraense.

Passou muitos anos em Salvador, onde estreou no espetáculo "Viva o Cordel Encarnado", com direção de Arly Arnaud, que na época estava se formando em teatro e hoje tem trajetória reconhecida inclusive no cinema. Em outra ocasião, atuou como bailarino, no show "Coração Brasileiro", da cantora Alba Ramalho. Depois disso viajou pela Europa, com grupos de dança folclórica.

Em outra fase de sua vida, Saci morou em São Paulo, onde entendeu que seu papel neste mundo era o de cultivar e difundir a cultura popular de sua região, em princípio, tendo como carro chefe a própria dança. Na capital paulista, ele morou em Pinheiros, próximo à famosa praça Benedito Calixto, onde via todos os dias adolescentes, moradores de rua, brincarem de dançarinos, imitando os célebres passos que Michael Jackson apresentava ao mundo nos anos 1980.

“Comecei a participar da brincadeira com eles, mas propondo outras danças”, lembra Saci que logo se tornou amigo dos meninos e meninas, dando início a um projeto que envolvia danças como carimbó, lundu,  frevo, maracatu, boi bumbá, entre outros estilos. “Eu queria mostrar a eles que havia mais que Michael Jackson. Aos poucos eles foram deixando de lado o uso de craque e se envolvendo na minha proposta. Batizei o projeto de Saci e acabei ganhando esse nome artístico que tenho até hoje”, continua.

Em 2009, já como Ângelo Saci, ele retorna a Belém para participar do Fórum Social Mundial, tendo como firme propósito seguir um trabalho de prática e pesquisa da cultura popular. Procurou o Instituto de Artes do Pará, o antigo IAP, onde propôs resgatar esses saberes por meio dos bonecos de pano, que ele produz e pelo qual é reconhecido.

“Os bonecos de pano têm, além de tudo, memória afetiva. Pode perguntar para sua mãe e seus avós, mas eles perderam espaço para a indústria de brinquedo que apostou no plástico. Os de pano eram tradição, mas foram chamados de bruxas, uma denominação pejorativa do cristianismo que jogou muitas mulheres, chamadas de bruxas, à fogueira”. 

A proposta feita ao IAP vingou e ele começou a ser convocado para realizar ações e oficinas, mas o que ele queria mesmo era estar nas ruas, em contato com o público em meio às tradições das festas populares. Nem lembro qual foi a primeira vez que encontrei Saci na minha vida, e pode até ter sido no FSM de 2009, no qual trabalhei na organização da programação cultural, mas sei que percebi logo que ele tinha algo de especial e com a qual me identifico. Ele acredita no que faz, tem certeza do caminho que escolheu.

Aos 62 anos, segue produzindo, mesmo em meio ao caos instalado no mundo pelo novo coronavírus. O isolamento social não sustou sua atividade, que continua sendo requisitada por pais que acreditam na cultura popular, como um ótimo entretenimento para as crianças, hoje, mais do que nunca confinadas em casa.

“Tenho recebido encomendas de bonecos e estou trabalhando também para realizar outros projetos e sonhos de vida”, diz ele. “E desde que postamos o vídeo do Seu Pequeno, venho recebendo muitas mensagens e incentivos”, revela ele, que reencontrou amigas alemães nas redes sócias, que viram seu vídeo. “Eu não falava com elas há muito tempo, me disseram que adoraram o vídeo”. 

As amigas ficaram interessadas em apresentar o trabalho dele a instituições alemães que realizam intercâmbios culturais com a Amazônia. Acredito que pode dar muito certo. Vestido com seu clássico chapéu de palha ribeirinho ou variando isso com cocar indígena, munido de uma cesta sempre recheada de personagens da floresta, em breve ele e todos nós estaremos de volta aos abraços e ele tem um objetivo maior para alcançar e que havia deixado para trás, desde que saiu de Alenquer, no Baixo Amazonas.

“Na minha cidade, tem um espaço em que funcionou a fábrica de sapatos do meu pai e que está abandonada. Gostaria muito de implementar lá um projeto nos moldes do Curro Velho, para trabalhar com jovens e adolescentes em situação de vulnerabilidade. O projeto se chama Acari, que é o peixe da sustentabilidade na região. Quero fortalecer a cultura do Marambiré, uma festa que reúne a cultura quilombola, indígena e cabocla, e tantas outras coisas. Gosto de me sentir útil”.

No isolamento social, a produção de saci continua, mas isso também deixou alguns planos à deriva, como uma oficina de confecção de bonecos que está fechada para junho com o Sesc da Doca. “Agora eu já não sei quando poderá ser feita. Mas sei que tudo isso que está acontecendo traz uma mensagem muito clara ao homem, de que a riqueza material é nada quando você precisa ficar em casa para perceber a real grandeza da vida”, diz ele que é também budista! É isso, mestre! 

Vejam O Aniversário de Seu Pequeno

Leiam mais sobre o fazer de Mestre Saci

Nenhum comentário: