Dona Onete ontem soltou a voz no Teatro Margarida Schivasappa, para a gravação do primeiro DVD de sua carreira, já consagrada pelo público e pela crítica. Como já é de costume, ela encantou o público, arrebatou gritos, aplausos, fez o povo levantar e dançar nas duas passarelas entre as filas de poltronas vermelhas.
Aos 77 anos, nossa encantadora de botos, como foi chamada em um documentário produzido pelo projeto Visceral Brasil, está cantando ainda melhor que antes e estava visivelmente feliz, muito feliz.
O repertório fez um passeio por sua carreira, hoje, internacional. Dona do pedaço, ela é cortejada aonde chega com sua simpatia extrema e presença de espírito, e isso inclui países da Europa e os Estados Unidos. A “rainha do carimbó chamegado” vem realizando sonhos. Ontem, ao cantar "Banzeiro", e trazer à tona o banguê, “que serve pro carnaval e pro mês de junho”, ela também realizou um desejo.
“Fico muito feliz em poder apresentar este ritmo aos jovens”, disse ela, que é amada por gente de todas as idades. A professora Ionete da Silva Gama, que foi Secretária de Cultura do Município de Igarapé-Miri, onde nasceu e se aposentou como professora de história e estudos amazônicos, domina muito bem o português e brinca como quer com a linguagem cabocla. Tem mais de 200 composições que ainda rendem muitos discos. As letras trazem temáticas variadas, mas em essência ressalta o protagonismo feminino, que está em tudo que ela faz. Mais atual e bem vindo, impossível.
Movimento LGBT, rock'n roll e terceira idade
Do romance de “Proposta indecente”, ela também entoa um “Ora vejam só, meu coração virou um grande brechó”, trabalha signos do imaginário amazônico, como em “No meio do Pitiú” e “Banzeiro”, que dá nome ao novo disco.
E vai mais longe, surpreendendo sempre, a Dona Onete. Diz que é merengueira, e que curtia sua época ouvindo e dançando Elvis Plesley. Depois aborda, do seu jeito, o movimento LGBT, na canção “Na linha do arco-íris”, que fez para um querido amigo que já morreu. Pede respeito às diferenças.
Ela também chama atenção da turma da terceira idade, e incentiva à vida, por experiência própria. “Que bom ver tanta gente da terceira idade aqui, vocês precisam sair de casa, acreditem, vocês podem!”, bradou. E quanto mais era aplaudida, mais sorria e dizia com aquele traquejo de riso na fala. “Ai minha gente, a casa recebe, a casa recebe”. Linda. Não faltou, claro, o grande sucesso “Jamburana”, pra todo mundo tremer, entre outros sucessos e músicas ainda inéditas.
Jeito maroto, risada boa de ouvir, Dona Onete é pura simplicidade. Alguém na plateia pediu uma música. “Essa não está no repertório”, respondeu, mostrando disciplina ao que foi combinado com a produção. Ao final, generosamente disse “agora acabou gente, o que vocês querem ouvir”, mas a cortina foi fechada, sem que ela realizasse o desejo dos que aguardavam por isso.
Após muitos ‘viva Dona Onete’ e ‘volta Dona Onete’, antes mesmo da cortina reabrir se ouviu a voz dela lá de trás, “vamos voltar”. Delírio do público e a produção, na verdade, aproveitou para gravar mais uma vez algumas das músicas do repertório. Nada de bagunçar o coreto. “Eu pensei, gente, que era fácil gravar um DVD, mas não é”, brincou. E mais uma vez, foi aplaudida de pé.
Todos saíram satisfeitos do grande espetáculo que teve Dona Onete, sempre ela em destaque, acompanhada por músicos experientes que a acompanham, como Pio Lobato (guitarra) e Vovô (bateria), que ao lado de Breno Oliveira (baixo), também já acompanharam outros mestres (Mestres da Guitarrada), e músicos mais novos, mas também com experiência e que estão a altura do talento de Dona Onete, como o backing vocal, Kleiton Silva e o extraordinário set de percussão, formado com João Paulo Cavalcante, Douglas Dias e Rafael Barros. Dan Bordalo fez participação nos teclados.
Sedutora, faceira e cheia de charme
Foco especial nos saxofonistas que, enquanto tocavam, dançaram e pulavam ao lado da Diva, que reinava absoluta numa poltrona, ao centro. Rainha. Tudo planejado. Alegria no palco, alegria de viver era o recado.
Daniel Serrão e Felipe Ricardo representaram ali, “os lindos morenos do meu Pará”, cantados por Dona Onete que, mesmo com a dificuldade que tem de andar, se levantou em várias vezes e dançou para seu público. Essa mulher é um fenômeno amazônico.
O registro de um repertório tão poderoso como o dela, proporcionou momentos de extrema emoção. Algumas músicas foram executadas mais de uma vez para melhor captação no DVD, o que estendeu a gravação para um pouquinho mais de duas horas, mas quem disse que alguém reclamou? A gente saiu querendo muito mais.
Algumas pessoas, porém, perderam o momento histórico. Chuva e trânsito em Belém do Pará quando se combinam, atrasam mesmo aqueles os que não costumam perder a pontualidade. Por outro lado, a confusão de um público extra em ocasiões como essas é comum, afinal todos queriam prestigiar Dona Onete.
O Teatro Margarida Schivasappa possui menos de 500 lugares. E a primeira fileira foi bloqueada para que as câmeras que estavam gravando o DVD fossem operadas.
Em 2012, quando fiz o DVD de Mestre Vieira em homenagem aos 50 anos de guitarrada, no Theatro da Paz, e Dona Onete, aliás, estava lá, não foi diferente, um pouco pior, com certeza. Dois dias de show e muita gente não conseguiu entrar, porque os lugares, cerca de 800, esgotaram mesmo. Amenizamos a situação instalando no segundo dia um telão na frente do teatro, apaziguando os ânimos dos inconformados com toda razão.
Nossos mestres da cultura popular, claro que merecem mais do que isso. E há tantos ainda para serem gravados e reconhecidos. Vale ressaltar que um registro, assim, mais que necessário é um gesto de contribuição e soma para a memória da cultura brasileira, a ser disponibilizado a várias outras gerações.
A previsão de lançamento do DVD de Dona Onete é para junho deste ano, com exibições em São Paulo e Belém.
A produção musical ficou sob a responsabilidade de João Paulo Cavalcante e Daniel Serrão, a direção artística, de Rodrigo Viellas, sob coordenação de produção de Viviane Chaves, da Amplicriativa.
Além do DVD do espetáculo, um documentário também está sendo realizado, focando na vida de Dona Onete, e que mostrará sua trajetória, que inicia muito antes dos anos 2000, quando ela então com seus 60 e tantos anos foi descoberta pelo Coletivo Rádio Cipó, no bairro da Pedreira em Belém.
Em 2001, gravou a marcante “Paixão Cabocla”, com o grupo, torando a música, protagonista de sua vida. Dona Onete gravou o primeiro CD “Feitiço Caboclo” (2012), aos 72 anos, e agora, aos 77, “Banzeiro” (2016), álbum que concretamente lhe trouxe o reconhecimento devido. Deve vir muito mais por aí. Evoé!
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