Edgar Castro, em Dezuó
Fotos: Cacá Fernandes e Bruna Lessa/
Bruta Flor filmes.
|
O ator e diretor paraense Edgar Castro teve participação marcante no teatro produzido em Belém na década de 80 e início dos anos 90. Foi fundador e exerceu as funções de dramaturgo e diretor do grupo Pé na Estrada – cuja poética se apresentava como uma das mais experimentais naquele contexto –, e também esteve em produções de grupos emblemáticos da época, como Cena Aberta (O auto da compadecida, Palácio dos Urubus) e Experiência (Ver de Ver-o-Peso, A terra é azul?, A mulher sem pecado).
Em 1995, mudou-se para São Paulo e lá seguiu com sua vocação para homem de teatro. Nesses 24 anos, trabalhou com diretores do quilate de Antunes Filho e Roberto Lage, assim como também integrou – ou integra – coletivos importantes como Cia do Latão, Cia São Jorge de Variedades, Cia dos Inventivos e Cia Livre, entre outros.
Paralelamente às atividades artísticas, Edgar também tem se dedicado ao ensino. Lecionou na Escola Livre de Teatro de Santo André de 1999 a 2011, onde foi coordenador pedagógico no período 2007 a 2009. Entre 2012 e 2013, coordenou a Área de Teatro do Centro Livre de Artes Cênicas (CLAC), em São Bernardo do Campo.
Em 2015, atuou em Dezuó – Breviário das águas, do Núcleo Macabéa, com direção de Patricia Gifford. O espetáculo reflete sobre os impactos da construção de uma usina hidrelétrica onde vivem populações tradicionais da Amazônia. A qualidade do trabalho rendeu duas indicações ao prêmio Shell, nas categorias Dramaturgia e Direção de Arte.
Edgar Castro: Durante o processo de criação de Dezuó foi se desenhando no horizonte da equipe uma espécie de alvo maior, que era apresentar o trabalho na Amazônia. Havíamos inscrito o projeto em alguns editais de circulação nacional, sem sucesso. Então quando veio o convite do USINA de participar do MAMBEMBARCA e, posteriormente, a notícia de que o projeto havia sido contemplado dentro do Rumos Itaú Cultural, sentimos que uma espécie de “destino” do trabalho se confirmava.
Então nossa expectativa é a de fazer o melhor possível no sentido de gerar uma experiência significativa, que possa vir a produzir um encontro real entre o trabalho e o público. E também expectativa de grande aprendizado, por estar na companhia de velhos amigos – Alberto, os Cláudios, Valéria, Nani, parceiros e parceiras tão queridos e donos de sua própria história.
Holofote Virtual: Dezuó narra a trajetória de um menino cuja família é expulsa da comunidade onde vive por causa da construção de uma hidrelétrica. O que significa pra você encenar essa história para populações em condições de abandono semelhantes?
Edgar Castro: Em 2017 fizemos um circuito de apresentações por nove comunidades quilombolas no Vale da Ribeira, região Sul do estado de São Paulo e território humano com profundas semelhanças com o contexto amazônico presente em Dezuó, semelhanças no sentido de um histórico de injustiça social e violação de direitos.
O diálogo que o trabalho estabeleceu com a experiência de luta daquelas comunidades, sobretudo pelo retorno que nos foi dado pelos líderes mais velhos de que aquela história era também a história deles na defesa de seus territórios e de seu direito à terra, foi uma das experiências mais marcantes e construtora de sentido na trajetória desse trabalho. Nosso desejo é de que o encontro com as comunidades presentes no roteiro do projeto MAMBEMBARCA seja de riqueza semelhante.
Holofote Virtual: A oficina que você vai ministrar em alguns municípios propõe uma reflexão sobre a dimensão pública do ato teatral. Por que você considera essa abordagem importante para artistas em formação?
Edgar Castro: Em certo sentido o ofício do intérprete esteve e está cercado por uma espécie de fetiche relacionado a uma falsa condição existencial de privilégio, fetiche esse atualmente muito alimentado pela indústria cultural e a produção em série de “celebridades” e seus subprodutos.
Então acredito necessário reafirmar, a quando dos processos formativos do intérprete e indo na contramão da fornalha de futilidades da sociedade de consumo, que além da natureza de ofício e seus imperativos ao futuro trabalhador da cultura – conhecimento dos materiais e das habilidades técnicas específicas –, existe também a dimensão social do ofício, o teatro como aquele espaço onde a pólis reflete sobre si mesma, onde o pensamento crítico, através da experiência estética e por ela potencializada, é estimulado, onde a luta de classes como motor da sociedade é explicitada e os mecanismos de opressão desnudados.
Holofote Virtual: Do repertório do grupo USINA, você teve a oportunidade de assistir ao espetáculo Solo de Marajó, com Claudio Barros, em São Paulo. Como foi a experiência e como será dividir a caravana com esse artista da sua geração?
Edgar Castro: Sim, sou da mesma geração que Claudio Barros. Juntos, dirigimos A Terra é Azul, trabalho fundamental na construção do meu pensamento como artista. Solo de Marajó, além de um estupendo trabalho sobre a obra de Dalcídio Jurandir, um dos maiores escritores brasileiros, foi a atualização no meu imaginário da profunda e arriscada verticalidade que sempre vi na maneira como Claudio lida com o ofício.
Sem concessões, radicalmente mergulhado na construção de uma poética visceral e vinculada ao seu tempo. O absoluto rigor que fundamenta seu trabalho como intérprete em Solo de Marajó é, partindo do que acredito, a mesma pedra fundamental para o exercício da liberdade humana. Dito isso, imagino que descer o rio com Claudio vai ser uma farra das boas!
Holofote Virtual: Neste primeiro semestre você deverá participar do novo espetáculo da Cia. Livre, com direção da Cibele Forjaz. O que vocês vão aprontar dessa vez?
Edgar Castro: Em 2017, a Cia Livre realizou cinco leituras encenadas de cinco textos de B Brecht, cada uma delas com um coletivo parceiro. Uma dessas leituras foi a de Os Horácios e os Curiácios, com a Cia Oito Nova Dança.
Nessa leitura contextualizamos a fábula de Brecht, tendo a luta das comunidades indígenas pelo direito à existência como principal eixo estruturante. Com a atual confirmação da trágica atualidade dessa perspectiva, como por exemplo a recente medida de que a demarcação das terras indígenas passa a ser competência do Ministério da Agricultura, a Cia Livre decidiu dar continuidade ao trabalho iniciado com aquela leitura.
A montagem do novo espetáculo deve começar início de fevereiro, com o mesmo coletivo parceiro – a Cia Oito Nova Dança –, e estrear em junho. Decidi, para não chocar a agenda desse trabalho com o projeto MAMBEMBARCA, trabalhar não como ator, mas dentro da dimensão pedagógica do projeto, já que uma das etapas do mesmo é a apresentação em escolas da rede pública. Como retomei recentemente à faculdade iniciando um curso de pedagogia, vi nesse projeto a oportunidade de desenvolver um diálogo verdadeiramente rico sobre a presença do teatro na comunidade escolar.
Holofote Virtual: Como sabemos, o Brasil vive um momento bastante singular de sua história. Como você pensa o papel da arte e dos artistas brasileiros neste momento?
Edgar Castro: Pergunta espinhosa, já que dependendo da resposta posso criar a falsa impressão de que existe “o” papel para a arte e para os artistas brasileiros nesse momento. Nada mais colonizador do que essa ideia. Posso falar por mim e pelo que acredito, dentro das minhas escolhas. São tempos difíceis, sem dúvida, com virulentas agressões às garantias civis, com o esgarçamento do tecido social até a sua ruptura em facções partidárias movidas pelo ódio, com a falência do judiciário e o império da hipocrisia, com a extinção de qualquer rastro de dignidade por parte da grande imprensa, entre outros vetores de autodestruição.
Esse cenário me leva a desejar que a experiência teatral, que é o meu quintal dentro desse contexto macro chamado “arte”, seja a de restituir alguma integridade a esse tecido social ferido, através de uma experiência que promova uma experiência de sensibilidade coletiva. Intuo que esse seja uma tentativa de gesto necessária nesses tempos.
Holofote Virtual: Você vive em São Paulo há mais de 20 anos. Tem planos de um dia, num futuro muito distante, armar sua rede na beira de um rio amazônico?
Edgar Castro: Sei que não vou enterrar meu umbigo em São Paulo. Esta cidade tem sido muito generosa comigo durante esse tempo que estou aqui, mas o Pará nunca abandonou meu futuro. E, sim, essa imagem que você coloca é uma imagem posta em algum ponto do meu horizonte. Sei que para lá me dirijo. Quando chegarei, não faço ideia. Vai que o projeto MAMBEMBARCA é o meu check-in. Afinal, a beleza do futuro é que ele não está traçado em todas as suas linhas, e o desenho final pode nos surpreender.
Nenhum comentário:
Postar um comentário