21.8.10

Entrevista: Usina estreia seu mergulho em Dalcídio Jurandir

No início desta semana, Alberto Silva Neto, diretor do Grupo Usina Contemporânea de Teatro, convidou jornalistas, amigos e artistas que quisessem assistir os ensaios de “Eutanázio e o princípio do mundo”, que estreia hoje (21), e fica em cartaz até setembro, aos sábados e domingos, sempre às 20h, no Instituto de Arte do Pará, com entrada franca.

Era um ensaio corrido, com início marcado para o meio dia. O convite, aqui, foi aceito e a alma, alimentada. Na sala de dança, a concepção visual de Nando Lima; a iluminação de Sonia Lopes; o desenho de som de Cláudio Melo e a dramaturgia de Paulo Faria, paraense radicado em São Paulo, colocam o público em um cenário de atmosfera amazônica e marajoara.

As sessões são para, no máximo, 45 pessoas. Entrando no espaço cênico da nova montagem do Usina, sente-se logo o remanso da maré e a velocidade do tempo, na ilha do Marajó, testemunhas dos conflitos de Alfredo, personagem interpretado pelo ator Milton Aires, e das histórias de Eutanázio, contadas por Felícia, Raquel e Irene, interpretadas por Nani Tavares, Valéria Andrade e Vandiléia Foro.

Com o patrocínio do Ministério da Cultura, o projeto propõe uma versão cênica para algumas histórias narradas pelo romancista Dalcídio Jurandir em seu primeiro livro, “Chove nos campos de Cachoeira”. A realização conta com apoio cultural de Instituto de Artes do Pará, Academia de Danças Ana Unger, Hotel Regente.

A ideia de levar à cena o universo de Dalcídio está nos planos do Usina há 12 anos. A oportunidade veio com o prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz, da Funarte, em 2009.

Além da montagem do espetáculo, a ação incluiu pesquisa de campo no Marajó, e realização de oficina e apresentação de “Parésqui”, espetáculo anterior, no município de Ponta de Pedras.

Foram meses de trabalho, com ensaios e um seminário, o ponto de partida de tudo, ainda em fevereiro deste ano. “Fizemos um longo mergulho. Em certos momentos parecia que não íamos aguentar. Mas estamos aqui, prontos pra mostrar, em carne e osso, a que chegamos”, diz o diretor do espetáculo, Alberto Silva Neto.

Pergunto a ele como lhe fica agora a obra de Dalcídio, depois deste mergulho profundo. O diretor me diz que "a obra do escritor é um abismo para dentro do ser humano”, e que ele continua se sentindo como um leitor apaixonado, que sempre terá diante de si um infinito a desvendar.

O espetáculo é delicado, suave e, ao mesmo tempo, impactante sob o ponto de vista estético, denso sob o da dramaturgia. “Espero que nosso espetáculo contribua para aproximar esse genial escritor paraense de mais e mais pessoas. Precisamos ler Dalcídio Jurandir”, enfatiza.

Depois da temporada de estréia, a expectativa do grupo é circular com o espetáculo. Anda não há nada previsto mas, na intenção de viajar com a peça, o grupo projetou uma estrutura simples, pensada pra facilitar os deslocamentos e se adequar aos mais variados espaços, sem perder sua poesia.

Após os últimos ensaios, e na expectativa da estreia, Alberto Silva Neto respondeu a entrevista que segue abaixo, realizada pelo Holofote Virtual para seus leitores. Saiba um pouco mais sobre como o encanto amazônico dalcidiano se projetou na encenação do Usina.

Holofote Virtual: O universo de Dancídio Jurandir, em Chove nos Campo se Cachoeira, está muito presente nesta montagem, ma sé difícil imaginar como conseguistes condensar desta maneira um texto tão denso quanto extenso...

Alberto Silva Neto: Buscar inspiração num romance pra criar a cena teatral é fazer escolhas. Não dá pra abarcar a complexidade de um romance em uma hora de espetáculo. Decidimos, primeiramente, que iríamos contar duas histórias paralelas, a do menino Alfredo e a de Eutanázio.

O primeiro sonha com o futuro, o segundo é atormertado pela lembrança do passado. Pensamos, também, que a história de Alfredo poderia ser contada por ele mesmo, enquanto a de Eutanázio seria narrada por três mulheres de sua vida: Raquel, Irene e Felícia.

A ausência dele se faria presente. Assim, o elenco mergulhou na obra e extraiu dela aquelas palavras que gostaria de fazer também suas. Como eu posso "me dizer" pelas palavras de Dalcídio?

Depois veio a participação importante do Paulo Faria, como dramaturgo, que ajudou a organizar essas falas pessoais numa estrutura, que no fim contou com a colaboração de todos. Acho que o resultado de todo esse processo faz com que o universo dalcidiano povoe, de certa forma, o espaço cênico.

Holofote Virtual: Em pouco mais de uma hora, o espetáculo parece dar conta do romance, foi a sensação de uma primeira impressão que tive. Como vocês chegaram a isso? E do que sentirias falta, ainda no texto, na encenação?

Alberto Silva Neto: Nem sei dizer quantas versões diferentes fizemos dessa dramaturgia. Todo dia mudávamos frases de lugar, trazíamos novas ou jogávamos fora cenas inteiras. Foi o jogo da criação cênica que definiu o que seria dito. E a potência de gerar imagens ricas a partir dos fragmentos escolhidos. Hoje, sinceramente estou satisfeito com o resultado. Tenho convicção de que essa é a nossa melhor versão para a obra que escolhemos para induzir essa criação. O que não significa que não pensarei diferente amanhã.

Holofote Virtual: Há um recorte de vida pessoal do ator Milton Aires, que faz um paralelo do tempo da infância de Alfredo. Qual foi teu intuito em utilizar esta linguagem no espetáculo?

Alberto Silva Neto: No caso do trabalho com o ator Milton Aires, que nasceu no Marajó, escolhi revelar, em cena, as histórias pessoais que foram contadas, como exercício para buscar experiências de vida dele que pudessem servir ao trabalho.

O resultado é que na dramaturgia final ora ele narra Alfredo, ora conta histórias de vida reais, que no final das contas se parecem muito com a ficção dalcidiana. Nesse sentido, é muito corajosa a atitude do Milton, de se contar assim, é comovente de tão delicado o trabalho dele.

Holofote Virtual: Pude ver em “Eutanázio”, um pouco das linguagens utilizadas também em Parésqui, Mandrágora e o Solo do Marajó, todos dirigidos por ti. Fala um pouco sobre esta construção, como um traço ou uma marca de direção tua.

Alberto Silva Neto: De fato há semelhanças, e percebo que existe um fio estético unindo essas encenações. Ainda não sei falar muito disso. Mas posso dizer que uma referência muito forte são os conceitos de espaço e objetos vazios, de um encenador inglês chamado Peter Brook.

A cena é um espaço como uma folha em branco, na qual você vai escrever as cenas ressignificando o tempo todo o corpo do ator e os objetos cênicos. Já a presença dos atores em cena assume a função de mostrar que os criadores são também testemunhas do ato dos companheiros de criação.

É muito bonito ver um ator assistindo ao colega enquanto ele atua, e também saber a hora de desaparecer, mesmo estando o tempo inteiro ali, presente.

Holofote Virtual: Ao ver o resultado de um projeto, que levou meses de preparação, penso nos obstáculos naturalmente impostos pela longa duração do processo e que só podem ser vencidos se o trabalho de todos os envolvidos for feito em conjunto e com certa paixão. Como é que tu vês isso como o diretor?

Alberto Silva Neto: O teatro é uma arte coletiva. Quem não compreender isso está perdido. Cedo ou tarde descobrirá o erro. E nós, no Usina, temos isso como premissa: todos são criadores.

Foi assim que tivemos, além do Milton, as atrizes Nani Tavares, Valéria Andrade e Vandiléia Foro, todas mergulhadas em desafios pessoais na relação com o trabalho, muito guerreiras, muito decididas, muito apaixonadas.

Depois a equipe, com Nando Lima na concepção visual, Cláudio Melo no desenho de som, Sonia Freitas na iluminação, e outros tantos parceiros cenotécnicos, operadores, produtores, que foram e são, todos eles, fundamentais pro resultado final.

Teatro é assim: muitas falas convergindo para uma única concepção cênica, que deve ser capaz de abarcar, ao mesmo tempo, a unidade e a multiplicidade desses muitos olhares. Esse talvez seja o grande desafio dos encenadores.

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