10.9.10

A poética de Dalcídio Jurandir no espetáculo "Eutanázio e o Princípio do Mundo"

"Eutanázio e o Princípio do Mundo" está em cartaz até o dia 26 de setembro, sempre aos sábados e domingos, 20h, com entrada franca, na Sala de Dança do Instituto de Artes do Pará (Praça Justo Chermont 236, Nazaré - ao lado da Basílica).

Fui ver na semana passada.
Na platéia, lotada, também estavam atores, diretores de teatro, público em geral e jornalistas. O que segue abaixo é um texto de um poeta, escrito pouco tempo após a apresentação.

Foi enviado diretamente ao diretor, Alberto Silva Neto, pelo seu autor. O Holofote Virtual teve o privilégio de recebê-lo e não poderia deixar de publicá-lo, pois ele consegue traduzir com muita sensibilidade o que vimos ali naquela noite...


Nós... afogados em poesia cênica

Por Carlos Correia Santos

Fazer poesia cênica é tarefa difícil. Dificílima. Mas antes mesmo do mergulho nessa questão, nunca é demais frisar: fazer poesia em si é um desafio que, passados séculos e séculos, permanece assustador. Fazer poesia é resignificar o mero, transformá-lo em vetor de beleza, mesmo que essa beleza seja tradução de horrores. Fazer poesia no palco, na cena, é missão corajosa. Dar a corpos de atores letras que dialoguem com emoções profundas de quem está na plateia é trabalho árduo, ousado, tocante.

O espetáculo “Eutanázio e o Princípio do Mundo”, do grupo Usina Contemporânea de Teatro, produção vencedora do Prêmio Myriam Muniz, da Funarte, dirigida por Alberto Silva Neto, com Milton Aires, Nani Tavares, Valéria Andrade e Vandiléia Foro, é, em essência, um exercício de poesia cênica. Arriscado em vários sentidos. Primeiro, arriscado ao propor repoetisar uma obra prima da literatura, o romance “Chove nos Campos de Cachoeira”, de Dalcídio Jurandir.

O livro do escritor paraense, como todo seu acervo, é já um mergulho vertiginoso nos enlaces profundos entre palavra e conteúdo poético. São páginas e mais páginas nas quais não só o que é narrado tem condão de poesia, mas a pavimentação da escrita é também esforço de lavra.

“Eutanázio e o Princípio do Mundo” é um espetáculo arriscado também ao fazer dos interpretes páginas ao dispor de múltiplas grafias. Em cena, os atores são narrativas vivas. Textos que se movem, andam, respiram, gritam, sussurram, olham no fundo dos olhos do espectador – a proximidade é incomoda e belamente intensa –, são personagens vindos das letras dalcidianas, mas são também personagens vindos das memórias, dores e prazeres dos próprios atores, do diretor.

E, mais, são personagens que invadem, sem qualquer cerimônia ou pudor, as memórias individuais do público. Eles ali, diante de nós, são Dalcídio, são Milton, Nani, Valéria, Vandiléia, Alberto?...

Ou o estranho que está ao meu lado durante aquela sessão? Ou sou eu mesmo redesenhado sem que me tivesse sido pedida qualquer licença? São poesia. Porque poesia é isso. É invadir a sensibilidade sem cerimônia e seqüestrar reações.

O espetáculo inteiro nos rouba violentamente reações. E uma das ferramentas preciosas usadas para esse intento – engenhosa e sofisticada ferramenta – é a ininterrupta proposição de imagens. Não cessam de rodar e correr diante de nós imagens. Poesia é isso também: convite a ver imagens. São várias e belas e agônicas as imagens despejadas na arena a nossa frente. Para iniciar, a metáfora imagética do nascer.

Como um Macunaíma amazônico, Eutanázio nasce diante de nós. Evidentemente, despido de toda e qualquer amarra. Depois, a metáfora imagética do girar. Os personagens giram em seu contar, porque a vida gira, o mundo gira, nossas naturezas giram. E ainda: a partir de um mínimo cênico, é possível ver o Marajó dalcidiano: as janelas dos casebres, os poços nos quais muitos caem, as beiras de rios em que se lavam roupas, sonhos e vergonhas, os currais nos quais não só os peixes se prendem e se perdem, mas também virgindades tantas são fisgadas.

É possível ver Vênus (venérea, venal), Pietás, Pensadores. Botticelli, Miguelangelo, Rodin estão ali no colo de Dalcídio, em nosso colo. Poesia plástica a se talhar nos corpos dos atores que, de textos, passam a esculturas que suam e choram.

Tudo tão arriscado. Tudo tão felizmente arriscado. Arte é isso. Teatro é isso. Dar-se ao risco com ímpeto. E quem sai da sessão com a alma inteira “a riscar-se” é quem concordou em mergulhar nessas águas.

Sai o público todo riscado por sensações e percepções, todo riscado por palavras e gestualidades, todo riscado por imagens, confissões e vivências. Sai o público com a sensibilidade exposta e disposta a riscos. O que se principiou com as confissões do mundo de Eutanázio parece nos acompanhar rua afora.

“Eutanázio e o Principio do Mundo” é daquelas experiências que parecem não acabar quando se encerra o ato cênico. Segue-nos. Acompanha-nos. Porque a poesia é assim: ela se acorrenta a nossa emoção e parte em nosso encalço. Sim, pôr-se à arena montada pela Usina Contemporânea de Teatro é sentar-se diante de um mundo alagado por poesias cênicas para se deixar ficar misturado a esse universo sabem os deuses... até quando. Até quando?...

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