Bruta flor do querer
Conheça o universo do artista e a exposição “Suaves Brutalidades”, que ele abre nesta quinta, 15, no Museu de Arte Contemporânea Casa das Onze Janelas.
Por Bianca Levy
“Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra - talvez por isso, quem sabe? Mas nenhum deles se perguntou. Não chegaram a usar palavras como especial, diferente ou qualquer outra assim. Apesar de, sem efusões, terem se reconhecido no primeiro segundo do primeiro minuto. Acontece, porém que não tinham preparo algum para dar nome às emoções, nem mesmo para tentar entendê-las”.
Esse é o trecho do conto “Aqueles dois”, do escritor Caio Fernando Abreu, mas poderia ter sido escrito por Henrique Montagne, e na verdade são, em uma escrita visual fascinante, que pode ser conferida na exposição “Suaves Brutalidades”, que será lançada nesta quinta-feira, 15, a partir das 9h, no Museu Casa das Onze Janelas. A exposição seguirá aberta para visitação até o dia 30 de agosto, de terça a domingo, das 9h às 17h.
“Suaves Brutalidades” aborda as relações contemporâneas, mas debruçando o olhar sobre o homem, o que é e pode ser masculinidade e as rotinas de vida e modos de se relacionar entre homens. Com curadoria de Tales Frey, a exposição traz obras que transitam entre a visualidade e performance por meio de suportes multimídias, e é o resultado de um processo poético de vida e arte empreendido por Montagne durante seis anos. O artista concedeu uma entrevista exclusiva para o Holofote Virtual, onde conta com detalhes este processo criativo e a experiência de realizar uma exposição em tempos tão turbulentos.
Henrique Montagne: Bom, eu sou formado em Bacharelado em Artes Visuais pela UFPA. Mas, sempre tive direcionamentos para as artes. Sempre desenhei desde moleque, morava no bairro da Cremação em uma passagem chamada Mocambo, a casa da minha vó era de madeira e ela passava boa parte do tempo comigo, me dando papel e brincando comigo. Foi uma boa infância familiar, dentro de casa sempre tive muita liberdade, mas dentro do colégio, já não era mais bem assim...
Sofri muito bullying, perseguição na escola, situações constrangedoras e humilhantes, sempre voltava chorando da escola devido ao meu comportamento quando criança, sempre fui bem quieto e tímido e fora do padrão de um menino “normal” na época (e ainda hoje) que era jogar bola, paquerar todas as meninas e pensar em namoro. Eu, não. Sempre gostei de estudar e assistir filmes, desenhar, cantar e escutar música na MTV no início dos anos 2000.
Minha educação sobre o diferente sempre foi de respeito, e eu mesmo fui buscando sobre, desde pequeno tinha noção da minha “afetividade” e “sexualidade”, não via como diferença gostar de um menino ou de uma menina, mas sempre guardava isso pra mim. Minha família era bem humilde e não tinha referências e esses contatos com a diversidade; aprendi pela TV, na época ainda estava começando as “Lan Houses” nos bairros de periferia, daí comecei a acessar a internet e pela primeira vez tive acesso ao computador e fui pesquisando e vendo que não era só eu que pensava assim.
Depois com Ensino Fundamental e Médio, conheci outros adolescentes, colegas que compartilhavam dos mesmos pensamentos, que também estavam tentando se entender. Então já podia me defender e defender minhas ideias e convicções e o preconceito já era tido como algo “arcaico” (mas que perdura até hoje). Me mudei pro Jurunas nesse período, onde moro há mais de 10 anos.
Em 2013 tive a oportunidade de fazer um curso na ETDUFPA de Produção Cultural, lá tive o primeiro contato real, com artistas e pessoas “diferentes” do meu mundo e rotina, homossexuais, bissexuais, lésbicas e héteros. Assisti pela primeira vez uma peça de Teatro que não era “cristã”, inspirada no Faroeste Caboclo de Renato Russo, vi que a sexualidade era algo que realmente não tinha explorado nem 1/3, aquilo era um mundo totalmente novo.
Comecei a conhecer a noite e o circuito cultural e artístico de Belém naquela época. Com os colegas de teatro fui experimentando trabalhos artísticos, que na época era com fotografia e arte digital, eu trabalhava com os performers e criávamos obras juntos. Até que em 2014 eu fui selecionado pela primeira vez em um salão de arte, o Salão de Arte Digital Xumucuís e foi na Casa das 11 Janelas. Lá conheci algumas pessoas da UFPA de artes e a partir daí pensei em prestar vestibular pra Artes Visuais, e entrei na universidade em 2015. De lá foi um aprendizado de experiências e múltiplas vivências para enfim direcionar em 2016-17 a minha pesquisa e investigação poética e a minha produção como é hoje, o que gerou meu TCC “Até Logo: Ou a arte das relações” para a conclusão da graduação em 2019.
Com a curadoria do Tales, ele traz tanto trabalhos meus de 2013, muito antes de entrar na universidade, junto com trabalhos a partir de 2016, quando assumo e inicio de fato essa pesquisa em teoria e prática que finaliza em 2019, mas ressurge e abre margem para o período pandêmico, então também tem obras inéditas que nunca postei na internet nesta exposição.
Tendo essa poética, mas partindo do cenário atual da distância e de estar mais solitário que nunca. Tudo se conecta em uma narrativa que pode ser lida por vezes como autobiográfica, mas esta é um tanto como auto ficcional. Gira muito em torno do personagem, da criação, do causo que foi gerado, da ficção, do que pode ou não ser ou ter sido verdade. Parto de uma frase que eu mesmo utilizo algumas vezes.
“Existe mais verdade que a ficção?”. Com esta, abrimos pensamentos e adentramos um mundo de realidades mesmo que imaginadas. Então há um processo sobre as relações contemporâneas, mas tendo um olhar do homem, tendo a masculinidade como reflexão, para trazer o corpo, os códigos, as relações de poder deste universo como forma de relacionar esses atravessamentos. Compreender o que é o homem, o que é e pode ser masculinidade, e as rotinas da vida de relacionar entre homens.
Falar de sentimentos é mais complexo ainda. Essa poética do afeto é importante, por que não é sobre falar de si mesmo, mas falar do outro e com o outro para ambos se compreenderem. Como ele se sente e eu me sinto, o que carregamos, o que trazemos, o que sofremos, o que ferimos, quem nos feriu, o que temos em comum, o que nos atraiu para termos nos apaixonado. Cada relação que eu tive foi diferente uma da outra, por que você aprende com o outro, sempre experiencio coisas diferentes com cada pessoa que dediquei meu tempo e minha vida, nem que seja por um curto período de tempo.
Existem homens, não existe “O Homem”. Tenho essa responsabilidade na palavra, de descobrir ainda o que é ser um homem. Ainda amo alguns ex-parceiros ainda mais que outros, e os sentimentos por uns se transformaram em irmandade, amizade ou em nada. Tem algumas referências destas experiências em trabalhos meus, de forma subjetiva, ou criados ficcionalmente. Por um longo período essa liberdade de amar foi negada, isso foi jogado desde o nascimento. E nós nunca sabemos como agir, é algo que o tempo, a vida e arte vai nos trazendo para viver. E arte é uma forma minha não de reviver o passado, mas de continuar vivendo o presente e olhar para o que passou com um outro olhar, cômico, crítico, dramático, reflexivo ou irônico.
“Um homem não chora, um homem nasceu para ser o chefe, gostar de mulher e ter uma (ou várias), ter uma “família”, ser respeitado, saber se defender, ser bom em futebol” e sei lá o quê. Quando você foge disso, ainda antes de se tornar adulto, você é questionado e declarado como um não-homem, uma “bicha” ou um gay (como se homossexuais não fossem homens), é bizarro, por que percebemos que quando um homem se torna adulto e falha em algumas questões destas que não sejam relacionadas a sexualidade, como na “carreira” ou na “família” você ainda é respeitado, pois gosta de mulher, ainda é um ser masculino e te chamam de no mínimo “moleque”.
Ser homem não é nada disso que o patriarcado nos impõe. É uma construção social, assim como a identidade mulher, “Você não nasce Mulher, Tornar-se”. “Você não nasce homem, torna-se”. Mas ser Homem ainda é um grande ponto de interrogação quando você questiona as certezas do que é ser um na sociedade. Ora, se a homoafetividade se constrói a partir da admiração e desejo pelo masculino. Ser desejado e desejar o outro igual a você não te faz menos homem ou um não-homem, seja homossexual ou bissexual. A masculinidade é ampla e diversa em muitas culturas. Estes códigos de conduta influenciam nossas atitudes, nosso corpo e o que pensamos sobre gênero, até no meio Gay e Homoafetivo.
Como digo, é um processo de cura e descobrimento, pois são muitos caminhos até encontrar um outro alguém. Nós chegamos em um relacionamento sem saber como dois iguais se relacionam, tentando não fazer que nossos traumas pessoais interferiram na convivência, em como admirar e respeitar o outro com as suas diferenças. Amar neste contexto é uma experiência suave, mas brutal. Muitos não podem expor o relacionamento em público, muitos não falam sobre sua sexualidade pros pais, e ainda estão em um “armário” por receios.
A geração atual de jovens queers se encontram privilegiados em certas questões como poderem andar livremente na rua e expressar sua identidade, mas é importante relembrar que houve muita luta das gerações anteriores, para que direitos básicos de existência fossem adquiridos na sociedade, pois LGBTQ estão em todos os lugares desde a existência do mundo, e devido ao cristianismo isso foi sendo imposto como culpa e associado ao pecado e também a perseguição da “ciência” eugenista como fuga da natureza “humana”.
A própria cultura queer, gay e bissexual possui uma história de resistência, onde códigos, signos, comportamento e linguagem específicos foram sendo criados através do século XX. Como formas de existências pertencentes a uma cultura diversa e plurais masculina. Como o crusing, os banheirões, as tribos como os bears, os twinks, os padrões, os queers, os intelectuais. Na música e na performance como a house music, a admiração pelo universo feminino e o enaltecimento das divas pop, a montação e a arte drag, a cultura ballroom, os aplicativos de pegação de celulares, fetiches sexuais etc...
Atualmente voltam a ter evidência devido sem sombra de dúvidas o fato de Leonilson (já falecido) entrar em circulação como um principal representante da arte queer no Brasil, mesmo que ele e os outros por um longo tempo ficaram invisibilizados e se quer foram mencionados em livros de arte. Como se não existisse uma arte brasileira ligada a sexualidade e a homoafetividade até os anos 2000s. E infelizmente alguns foram vítimas da Aidas. Na América Latina posso citar o cubano/estado-unidense Félix Gonzales Torres que possui um trabalho contemporâneo que se aproxima muito do meu falando sobre as fragilidades da vida e também sobre a masculinidade, mas tendo uma boa parte do seu trabalho direcionado a sua vivência com o vírus da HIV/AIDS na década de 90.
Também existem as artistas mulheres Tracey Emin e Nan Goldin que trabalham com as relações afetivas, com um ponto de vista “feminino” mesmo assim elas me fazem sentir muito conectado com seus trabalhos. Para além das artes visuais, séries como Black Mirror, The Twilight Zone. Na literatura, Ginsberg, Caio Fernando Abreu e Leminski. Na música, muita coisa. Além de ser artista, sou DJ e trabalhei muito na noite para pagar as contas. Então trabalhos e albums como os da Madonna, Cindy Lauper, Donna Summer, Pet Shop Boys, Tears for Fears, Depeche Mode, The Smiths, The Cure. Sou muito influenciado pela estética retrô Oitentista e Noventista. Isso se apresenta em algumas formas como apresento alguns trabalhos nesta exposição.
Quando digo adaptável, digo estar aberto a certas posições e direcionamentos que o próprio trabalho acaba pedindo e eu só espero o tempo de algo venha a ocorrer para isso ser transmitido para o trabalho, ainda sou daqueles artistas que precisam estar totalmente imersos para que o trabalho seja sincero. Que aquele trabalho seja uma partícula de mim e da minha alma e atmosfera, além da estética. Nem mesmo nas artes tradicionais, como no desenho, o meu desenho acaba se estendendo e se influenciando com outras linguagens como a fotografia, onde me aproprio de muitas imagens virtuais. Então se eu fosse um artista que escolhesse apenas trabalhar com uma linguagem, acredito que seria até mais fácil, mas não, ser um artista multimídia me traz estar adaptável as sinceridades e mudanças que o próprio trabalho pede.
O teu trabalho dialoga bastante com o ciberespaço e com uma sensação de vazio e preenchimento nas relações e interações on e off. Pra ti, qual a influência do virtual na tua investigação poética tanto no que tangencia a arte quanto as relações e lugares de afetos?
Acredito que este aparece como um campo de experimentação, mais do que o personagem principal. Pois acabo trazendo a tecnologia e como ela acaba influenciando subjetivamente a forma de se relacionar ou de ser hoje devido à um processo de investigação em torno da arte inserida nas novas mídias. Então a poética destas relações e lugares de afetos se reverberam no virtual e no presencial.
A tecnologia foi criada pelo ser humano e esteve desde o período primitivo, é uma forma de sobrevivência, o fogo, a internet... sobrevivência da vida, de sua maneira de pensar, de existir e de manter relações. E esta acabou se acentuando mais que nunca em um contexto pandêmico. Como as nudes, o sexo virtual, o flerte nos stories e no feed do instagram, as festas virtuais no zoom, Netflix, spotify, playlists para limpar a casa ou esquecer de alguém. Falar sobre estas interações são para além do clichê do “futurismo” ou do “high-tech”, mas toda esse virtual acaba fazendo parte da nossa vida e reflete na nossa cultura.
Serviço
Exposição SUAVES BRUTALIDADES, de Henrique Montagne. Abertura: quinta feira, 15 de julho, a partir das 9h, no Museu das Onze Janelas (Praça Frei Caetano Brandão s/n). Visitação até o dia 30 de agosto, de terça a domingo, das 09h às 17h. Entrada Franca. Informações: (84)99638-9426.
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