22.10.20

Fernando Segtowick fala de seu processo criativo

Produzir documentário não é fácil como às vezes parece. O processo todo, da pesquisa até a montagem, pode ser até mais complicado do que realizar um filme de ficção. Na entrevista a seguir, eu converso com Fernando Segtowick sobre a jornada de produção e lançamento de "O Reflexo do Lago", o seu primeiro longa metragem, que vem sendo exibido em festivais importantes de cinema, dentro e fora do país. Também falamos sobre fazer cinema na Amazônia, seus novos projetos e de políticas públicas para o audiovisual. Para ele, depois de algumas décadas de conquistas dos realizadores, com financiamento do governo federal, chegou a hora da contrapartida regional. 

“O Reflexo do Lago” levou cerca de quatro anos para ser lançado. Vi o documentário na semana passada. É surpreendente. Não espere entrevistas longas sobre sobre a perda de ecossistemas naturais, de emissão de gases e efeito estufa na região. Os danos causados, todos os impactos sociais e ambientais deixados pela construção da hidrelétrica de Tucuruí, no Pará, no entanto, estão "gritando" no filme.

“O Reflexo do lago”, inspirado no livro de fotografias "O Lago do Esquecimento", de Paula Sampaio,  traz recortes de memórias submersas, mas reflete principalmente as lições que não foram aprendidas com Tucuruí, assim como aconteceu com outros grandes projetos realizados na Amazônia, cujas tomadas de decisão sobre grandes obras públicas na Amazônia sempre foram pautadas na exploração da região, sem retornos sociais, deixando degradações ambientais irreversíveis. Belo Monte está aí, não é?

A fotografia toda em Preto e Branco revela o estado das coisas e das pessoas encontradas no percurso feito pelo diretor, que se coloca como personagem do filme, e dentro desse universo, nos conduzindo ao mergulho no tempo e na vida de um lugar que sobrevive à maior barragem hidrelétrica já erguida na floresta amazônica, ainda que, quarenta anos depois, os que moram nas ilhas do rio Caraipé, dentro do reservatório da usina, ainda não tenham  acesso à eletricidade em suas casas. 

A beleza da fotografia é tão grande quanto a tristeza que se instala em nós ao ver e ouvir cada fala espaçada de um morador em conversa com o diretor do filme. Os sons naturais que emanam de um lugar que apesar de tudo, ainda é habitado. Construída para fornecer energia à indústria do alumínio, não melhorou a vida das pessoas e nem se pensou na manutenção da floresta, na biodiversidade.

Da retomada do cinema paraense aos grandes festivais

O Reflexo do Lago” já foi exibido em Berlim, fez sua estreia nacional na semana passada, no “Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba”, e segue em outros festivais, como ele vai contar, até que seja disponibilizado na internet. 

É uma conquista para quem vem há pelo menos 30 anos militando pelo audiovisual paraense. Fernando Segtowick integra esse movimento que marca a retomada do nosso cinema, no final dos anos 1990, uma década marcada inicialmente com extinção da EMBRAFILME, um dos 'feitos' do Programa Nacional de Desestatização (PND), do governo de Fernando Collor de Mello. 

Em 1993, quando foi criada a Lei do Audiovisual, que passou a promover novos investimentos por parte do governo federal na produção cinematográfica. Depois disso surgiram editais de incentivo a longas e curtas, lançados pelo saudoso Minc. Foi quando começamos a falar também na retomada do cinema paraense. Primeiro com os editais do MINs, a partir de 1999 e depois com o edital Prêmio Estímulo da Prefeitura de Belém, uma conquista coletiva da categoria. Foram apenas duas edições, mas que renderam cerca de seis projetos, entre eles, “Dias”, o primeiro curta de Fernando Segtowick, que tinha concluído um curso de cinema na New York Film Academy, nos Estados Unidos.

O filme mostra o lado cosmopolitade uma cidade cravada no coração da Amazônia, sempre vista com eufemismos e por sua face mais exótica. Depois veio “Dezembro”, já em 2004 e, no ano seguinte, Fernando já começa a se voltar para o documentário com o lançamento de "Imagens Cruzadas", financiado pela bolsa de criação artística do Instituto de Artes do Pará (IAP), e em 2008, com “Jovens, Tefé, AM”, sobre os jovens da cidade de Tefé e da reserva Mamirauá, ambas no estado do Amazonas.

Trabalhei com Fernando em seu último curta de ficção, o premiado "Matinta", de 2010, produzido com o edital do MinC, um filme feito entre Belém e Mosqueiro, e que trazia como mote uma lenda amazônica das mais conhecidas. Sua estreia foi no 43º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro onde recebeu 2 prêmios – Melhor atriz (Dira Paes) e Melhor Som (Miriam Biderman, Ricardo Reis, Evandro Lima e Paulo Furnari Gama). Em 2015, Fernando criou a Marahu Filmes, com o sócio Thiago Pelaes, que assina a fotografia de “Reflexo do Lago. 

Holofote Virtual: A escolha de te colocares como personagem do documentário já estava no escopo do projeto desde o início, ou se foi algo que você optou já com as filmagens em andamento?

Fernando Segtowick: Realmente, desde o inicio tinha essa ideia de eu ser um personagem. Eu estudei engenharia, meu pai é engenheiro e tal, então, a principio a minha carreira seria trabalhar como engenheiro eletricista.

No tempo de estudante, eu cheguei a visitar Tucuruí. Eu queria trabalhar com geração de energia, porque eu achava interessante; e aí eu tinha uma foto dessa época. Eu, na barragem. Quando eu voltei pra lá, por conta do livro da Paula (Sampaio), de qualquer forma, eu voltei uma pessoa muito diferente. Estive lá, muito tempo atrás, quando eu nem imaginava em trabalhar com audiovisual, enfim.

O projeto tem vários anos. Primeiro o desenvolvimento, depois a produção. No desenvolvimento, eu já tinha uma estrutura de documentário que mesclava imagem de arquivo, com a vida dos moradores. Mesclava a equipe e também o diretor. Só que no começo era mais uma narração, um processo um pouco mais tradicional, mas não tanto como esse personagem diretor que chega pra fazer esse filme, seria uma coisa menor. 

Holofote Virtual: Como foi a pesquisa e o processo criativo para essa montagem final?

Fernando Segtowick: A gente recebeu uma verba para fazer o desenvolvimento, e a gente foi fazer pesquisa. Então a princípio, a gente foi atrás de lugares que a gente ia filmar, porque o lago é muito grande, então seria inviável, até mesmo em termos de custo, você dar conta de todo o lago de Tucuruí, que é uma coisa muito grande. E aí a gente acabou situando mais no rio Caraipé, onde eram essas comunidades. E aí fomos entender o lugar onde a gente ia gravar, entendendo também visualmente como esses lugares eram. 

Começamos a ir para Tucurí em 2016, então no começo era muito isso, aquelas entrevistas formais, a pessoa sentadinha olhando pra câmera, a imagem de cobertura e tal.  Mas desde o início, eu sempre tive muito claro o filme que eu queria fazer? Eu não sabia, mas eu sabia o filme que eu não queria fazer. Eu não queria fazer uma reportagem, e eu não queria fazer um filme institucional, então a gente precisava criar uma narrativa pra isso. Depois que conseguimos realizar a produção, comecei a criar esse roteiro no qual esse diretor vai e encontra com essas personagens, e vai atrás de fazer esse filme sobre este lugar. 

A montagem começou em paralelo, e com isso começamos a perceber coisas que funcionavam, outras que não funcionavam, enfim, isso faz parte do processo de um documentário com outra proposta de narrativa, de inovação, enfim. Então, basicamente funcionou muito assim: a gente pesquisou muito, filmou muito, entrevistou muita gente, falou com muita gente, filmou coisas na cidade, que acabaram não entrando, então tem muito material que não foi usado no projeto, mas que faz parte dessa narrativa, dessa jornada para esse lugar.

Holofote Virtual: Achei muito forte quando um dos moradores diz que se eles não falarem que havia uma floresta ali no lugar do lago, as novas gerações não iriam saber, pois isso vem se apagando já na memória. Tens contato com os moradores. Eles já viram o filme?

Fernando Segtowick: A gente tem contato com os moradores, mas eles não viram o filme inteiro, apenas trechos, porque a gente ainda não tinha conseguido finalizar tudo. 

A ideia era lançar o filme em julho desse ano em Tucuruí, mas como chegou a Covid, e como lá foi um dos lugares que mais foi afetado no Pará, ficou bem complicado. Estamos planejando fazer isso no primeiro semestre do ano que vem, mas sem uma data definida ainda, porque tem essa questão da pandemia, dos cuidados, porque muitas das personagens que entrevistamos são já de mais idade, enfim. Ficamos preocupados de fazer um lançamento desses, e levar o vírus pra lá pra dentro de Tucuruí. Eu falei essa semana com um dos entrevistados, não aconteceu nada, estão todos bem, mas a gente fica preocupado.

Holofote Virtual: Vamos falar da fotografia e do som do filme. Esses dois fatores mais a narrativa geraram uma obra de arte. Como foram essas escolhas? 

Fernando Segtowick: Desde o inicio eu sempre pensei em fazer o filme em preto e branco, e tínhamos uma referencia muito forte do trabalho da Paula Sampaio, mas eu achava que esse filme falava muito sobre o tempo. Ou seja, apesar dele se passar nos dias de hoje, ele se remete diretamente a uma obra que foi pensada nos anos 70, executada nos anos 80 e durante esse período todo, teve todas essas consequências, todos esses impactos. 

Ainda sobre a fotografia eu acho que quando se filma em preto e branco, traz mais essa percepção. E que isso é uma coisa que faz sentido para a Amazônia, de olhar para os ciclos. A gente tem falas desde 1945 até o fim dos anos 80, então o filme, pra mim, tem essa coisa atemporal, a palavra mais correta seria essa. 

Na questão do som, eu sempre achei que o lago tinha uma atmosfera, uma geografia, um território diferente. É um lugar mexido pelo homem, alagado, com árvores mortas, animas que desapareceram. Em se tratando de Amazônia, percebi aquele lugar como um lugar muito diferente dos que eu já tinha visitado, como reservas, enfim, lugares que tinham mais “vida”. Não é que ali esteja sem vida, porque tem os moradores, mas ele foi um lugar mexido, então acho que o som é fundamental pra gente marcar aquele lugar, como um lugar único. Investimos muito, tanto na parte de fotografia, quanto na de som. 

Holofote Virtual: O  que essa experiência te deixa de percepções sobre essa Amazônia, floresta adentro, sobre políticas públicas, grandes projetos? 

Fernando Segtowick: Eu acho que o filme tem muito sobre a Amazônia, quando a gente olha as imagens de arquivo, da época da construção da hidrelétrica, ou a gente olha as imagens de arquivo do pessoal que coletava castanha, a gente vê que não mudou muito. 

A região continua sendo olhada como o lugar a ser explorado, a ser domado; e para fornecer matéria prima, seja castanha, seja energia, seja minério, tudo para o exterior. O Reflexo do Lago é o reflexo desses grandes projetos, a maneira como a Amazônia é vista pelo mundo, como é vista pelo Brasil, que não conhece também a Amazônia, então, acho que tem muito isso,  tanto é que o título em inglês, tem essa questão do espelho da Amazônia.

Holofote Virtual:  A tua carreira começou com interesse pelo cinema de ficção. Isso mudou? Fala um pouco dessa trajetória como diretor.

Fernando Segtowick: Falando de ficção e documentário, cada vez mais essas fronteiras explodiram. Acho que todo documentário é uma obra de ficção. Ele é uma coisa criada, uma coisa pensada, desenhada, embora baseada em coisas reais. E eu vejo os depoentes, personagens,  ali como atores, assim como eu. Tem muita coisa ali que foi escrita, pensada, desenhada, pra funcionar como um filme de ficção. Então eu acho que essas coisas meio que se misturam, embora eu considere o filme um documentário.

E pensando na minha trajetória, eu fui muito pro documentário nos últimos anos por causa de custo. E eu acho, sinceramente, que pra mim é até um desafio maior, sabe? Você lidar com aquilo que está na sua frente, com a realidade, você traduzir, transpor aquela realidade como uma narrativa. Isso é até muito maior e mais desafiador do que simplesmente criar uma história da minha cabeça. Mas também tenho novos projetos de ficção.  E eu realmente queria também, como primeiro longa, um documentário, acho que eu me sentiria mais confortável, embora não tenha sido assim, pois foi um salto no escuro fazer o Reflexo.

Holofote Virtual: O momento exige de nós muito foco, estamos passando por mais um momento turbulento no setor audiovisual, com extinção do MINc, lentidão na Ancine, programas sendo extintos. No Pará, a Lei Milton Mendonça foi sancionada e estamos entrando em um processo de chamadas públicas emergenciais. Fala um pouco desse cenário e dos teus projetos para 2021.

Fernando Segtowick:  Agora a gente está num momento bem complicado, mas demos uma virada grande na nossa produção. Tivemos financiamento para pesquisa, consultoria de roteiro, produção executiva, participação em laboratório, viagens. Fizemos coisas que a gente nunca tinha feito nos últimos 15 anos anteriores. Os últimos cinco  valeram por uns 20 ou 30 anos.  Não podemos deixar que se perca todo o investimento que tivemos do Governo Federal, antes desse atual governo, e precisamos agora realmente da contrapartida do governo do Estado e da Prefeitura. 

É o momento dos investimentos regionais, Estado e Município, para que a gente não perca todo esse esforço já feito e nem todo esse resultado dos últimos anos. Chegou a hora de pensarmos nisso. Eu estou muito envolvido nos projetos e nas políticas. Sou diretor aqui no Norte da API, que é a Associação de Produtores Independentes, e do Conselho Municipal de Cultura. Tenho militado bastante para ver se essas coisas caminham.  Ainda é muito difícil para os gestores públicos entenderem que o audiovisual é uma atividade complexa, muito mais difícil que a música, que a fotografia, que o teatro, enfim.

E não que seja mais difícil de fazer, é porque sempre envolve muita gente, e por isso tem sempre o orçamento mais caro. Os nossos empresários têm muita dificuldade de acreditar nesse investimento, e isso gera dificuldade de captar na iniciativa privada em relação a outros segmentos, que já estão mais consolidados, ou que têm orçamentos menores, e um público mais definido.

Holofote Virtual:  O Reflexo do Lago tem feito uma bela carreira, como tem sido essa experiência pra ti?

Fernando Segtowick: Acho que isso é importante para o nosso cenário como um todo. Não somente para o filme, porque você ter um primeiro longa paraense no festival de Berlim é um marco realmente pra gente. E ele está sendo selecionado em outros festivais, enfim.. é um aprendizado, porque quando você vai pra um festival desses, você entende muito bem como funciona o mercado, como é que é isso dentro da indústria do cinema, como é você estar no festival, como é você participar dos debates, conhecer outros realizadores, ver outros filmes.

Está sendo um aprendizado muito grande pra mim, porque eu estou assistindo outros filmes, e com isso posso entender o que é que o cinema contemporâneo está produzindo, está fazendo. De uma maneira geral, independente de prêmio, de seleções, o filme já tem essa vitória por ter passado em alguns festivais importantes e continua sendo demandado. Para mim tem sido essa experiência de entender esse universo. Fui, pela primeira vez, a um festival grande na minha carreira. E já fui com um longa estreando numa mostra importante, então é uma responsabilidade, uma pressão, mas um aprendizado gigante.

Holofote Virtual: Projetos para 2021

Fernando Segtowick: Tenho quatro projetos dentro da Ancine que eu espero que sejam contratados, porque até agora estão dentro da burocracia. São duas séries documentais, um longa documentário, que estou como produtor executivo, pela Marahu, e uma série do edital da Funtelpa que também é documental. Em paralelo, estamos finalizando na Marahu um documentário que é sobre o Luiz Braga, e este já  tem um tempão que está sendo feito, mas ainda não encerrou. E estou tentando formatar o meu projeto de primeiro longa de ficção que se chama Passagem Esperança. Estou indo atrás de financiamento, porque ele ainda não tem. 

Holofote Virtual: Onde vai ser possível ver o filme nos próximos meses, algum outro festival on-line em vista?

Fernando Segtowick: Para os próximos meses temos uma exibição na França, no Festival Jean Rouch de filme etnográfico, e a gente vai confirmar e divulgar esta semana um novo festival que já me confirmou, mas ainda não posso divulgar, e a gente está na expectativa de próximos festivais ai para novembro e dezembro. Depois disso poderemos ter o filme acessado em novas plataformas paro público poder assistir. É isso. 

(Fotos: Still/Thiago Pelaes)

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