Por Leonardo Lichote
Bené Ribeiro tinha em Luiz Gonzaga mais do que um ídolo. O Rei do Baião era seu herói — a ponto de ele andar pelas ruas da cidade de Capanema do Pará com chapéu de cangaceiro. Tornou-se uma referência local tão forte por essa admiração que o próprio Gonzaga, quando esteve por lá, quis saber quem era aquele fã seu de que tanto falavam e pediu para conhecê-lo.
Dona Belém, mulher de Bené, era mais afeita ao cancioneiro de compositores como Roberto Carlos, Márcio Greyck e Odair José. Na casa do casal, não faltavam também discos de Elvis Presley, enviados regularmente por parentes que moravam nos Estados Unidos.
Fotos: San Marcelo |
Parceiro de Zeca Baleiro, Felipe Cordeiro e Nilson Chaves (compositor que é uma das maiores referências da música no Pará), Allex tem em sua gama de composições peças líricas e românticas, com influências que vão muito além de Raul — algumas delas presentes no EP “O amor que acreditei de porre”, lançado em 2020. Mas o artista queria, em seu primeiro álbum, reunir seu repertório mais ácido — para o qual Raulzito é referência central. “Verbalóide”, que batiza o disco, não por acaso é um neologismo criado pelo compositor baiano, que dizia que esse seria o nome de um livro seu, que nunca escreveu.
O elo mais forte com o legado de Raul, porém, é a presença de Rick Ferreira, guitarrista conhecido como “fiel escudeiro” do baiano. Entre 1974 e 1989, ele tocou em todos os discos do artista, além de ter produzido “"Uáh-bap-luh-bap-láh-béin-bum", que trazia exatamente aquela “Cowboy fora da lei” ouvida na fita de Allex. Em “Verbalóide”, Rick — músico que deixou sua marca também na obra de artistas como Erasmo Carlos e Zé Ramalho — faz todas as guitarras e assina a produção ao lado de Oliver Quemel e Carlos Sales.
“Billie” convida Billie Holiday para um diálogo-lamento sobre o preconceito racial, que a cantora experimentou na pele e denunciou — sua interpretação de “Strange fruit” é um ícone na luta antirracismo. Allex marca seu estilo em imagens que alcançam efeito no ouvinte com uma simples inversão semântica, como “A situação está branca demais” e “Vou levantar bandeira preta da paz”.
Inspirada num caso político no interior do Pará, “Chica me perdoa” é uma canção bem-humorada sobre traição. Sua letra explora a mitologia cristã ao feitio do que Raul fez em versos de “Al Capone”. Allex canta: “Chica, me perdoa/ Mas eu não matei Jesus/ Se eu participei/ Foi da confecção da cruz”. Na letra, o cinismo, elemento central dos personagens que o paraense destila em “Verbalóide”.
“Carnavais” prepara para a tocante balada “Barulho e torpor”, que soa como canção de amor terminado, mas guarda uma origem ainda mais dramática. Allex a compôs a partir da experiência de ver seu pai definhando devido a um câncer no estômago. “Cheirei você/ Com a intensidade de quem cheira cocaína/ Mas te vi sumir de mim” — os versos descrevem com precisão a sensação do compositor. A faixa guarda também um inspiradíssimo solo de Rick (“Reconheço um David Gilmour ali”, diz Allex).
O country “Tirolei” pinta o Brasil alegórico com personagens como “um doutor que acha que não é peão” e um burro que diz “que este ano vai ser baixa a inflação”. Acima deles, o mandatário que desafia, com a entonação de cowboy de seriado: “Eu tirolei, invento lei e falo em lei e escondo lei…”. A canção foi composta no governo de Michel Temer, mas segue válida como nunca no país de Jair Bolsonaro.
A verborragia ácida de “Verbalóide” chega ao fim com “Um pastor que também é doleiro”, sobre o personagem (real!) descrito no título. Na verdade, o pretenso religioso acaba servindo de símbolo de outros que se ecumenizam no louvor: “Aleluia, aleluia, aleluia/ Salvem-se os meus”. No coro, se afinam políticos sem caráter, homofóbicos, racistas, poderosos de toda a estirpe — todos alinhados no paredão do fuzilamento verbal de Allex e seu “Verbalóide”.
Para ouvir:
https://open.spotify.com/album/6zBGoMQENXNfgdOAsiyB9h?si=BHpyGDV3QaSRuHpPNjxiYA
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