15.6.13

Documentário traz história de um herói marajoara

Guto e Damasceno (Fotos de Mauro Fernandes, Still)
Haverá duas chances para ver de perto Damasceno Gregório dos Santos, afroindígena, criador do búfalo-bumbá e mestre da cultura popular marajoara reconhecido pela Secretaria da Identidade e Diversidade Cultural (SIDC/MinC). Além dos 30  minutos de relato e imagens que traçam sua trajetória, ele também estará presente com seu grupo na Mostra Terruá. Leia a seguir, também, uma entrevista com Guto Nunes, o diretor do filme.

Ele foi pescador e agricultor. Ficou cego quando atuava como operário na construção civil. Na cultura popular, Mestre Damasceno brilhou e se realizou. Foi onde ele encontrou um caminho que o levou a compor, até agora, mais de 400 músicas de carimbó, e a dedicar sua vida inteira juntos aos grupos juninos da região do Marajó.

“Comecei a cantar minhas músicas quando participei de festivais com compositores mais famosos da minha cidade. Foi aí que selecionei alguns garotos para montar um grupo folclórico e foi também onde comecei a cantar minhas canções. Ganhamos muitos festivais de música na regional e acabamos nos empolgando com esse trabalho. Hoje tenho inúmeros prêmios conquistados por meio da música”, disse Damasceno no finalzinho do mês de abril deste ano, em Belém, durante uma das ações da programação da Feira Pan Amazônica do Livro.

Damasceno e seu implacável sorriso
Quem presenciou, não teve como não se emocionar com sua delicadeza, talento e encanto. Foi uma noite inesquecível, a mesma em que Guto Nunes apresentou o teaser do documentário “Mestre Damasceno – O Resplendor da Resistência Marajoára”, contemplado pela Lei Semear de 2011, que será lançado no próximmo dia 22 de junho, no Sesc Boulevard. 

Haverá, antes, outra oportunidade de vê-lo em cena, cantando com seu conjunto, pois Mestre Damasceno será uma das atrações desta próxima terça-feira, 18 de junho, na Mostra Terruá Pará, que está sendo realizada no Teatro Magarida Schivasappa, sempre a partir das 20h. Os ingressos são distribuídos sempre no dia das apresentações de todas as terças-feiras, até o mês de julho. 

No dia 22, no Sesc Boulevard, às 19h, será o momento de ver Mestre Damasceno no telão. Entrada franca. “Faremos o lançamento oficial, ocasião que estarão presentes representantes da Lei de Incentivo a Cultura do Estado, patrocinadores, apoiadores, colaboradores e principalmente o público em geral, a comunidade de Salvaterra e seus representantes da sociedade civil, bem como algumas autoridades municipais. Estamos articulando uma grande noite para este dia”, diz Guto Nunes, o diretor do documentário que também sairá em DVD. 

Guto Nunes é apaixonado por cinema não é de hoje e o projeto de documentário que agora vem à tona, já rola há anos, muito antes de ter sido contemplado com a carta da Semear. É mais um exemplo de sonho realizado com persistência e certeza do que se quer fazer. 

O colorido do universo junino
Em parceria com Ná Figueredo, LabZone, Pousada dos Guarás, Fundação Curro Velho, Refrigerantes FLY e Hiléia, o documentário relata não apenas a obra criada por Mestre Damasceno, mas também sua vida, incluindo sua infância em Vila de Mangueiras, na comunidade Quilombola do Salvar, Marajó, contando ainda sobre sua adolescência em Salvaterra, e principalmente o seu empenho em manter a cultura do “búfalo-bumbá” e a tradição marajoara vivas, apesar de todas as dificuldades. 

Graduado em Artes Visuais e Tecnologia da Imagem (UNAMA), com especialização em Semiótica e Cultura Visual (ICA/UFPA), Guto é Mestre em Comunicação, Linguagens e Culturas (UNAMA), Programador Visual, Pesquisador e Articulador em Arte Educação, Técnico em Cinema e Vídeo e Produtor Cultural. Sempre atuante e envolvido nas questões do audiovisual, em 2009, ganhou o Prêmio da Secretaria da Diversidade e Identidade Cultural à Mestre Damasceno, da Ilha do Marajó e hoje é Facilitador da Linguagem Audiovisual, na Secretaria de Mídias Comunitárias – SECOM. 

Este filme é sua primeira direção. Talvez este seja um dos momentos mais importantes para ele, pois dirigir um filme e principalmente um documentário a respeito de alguém que continua escrevendo a sua história, e que vai estar na plateia vendo sua vida passar na tela, não é nada menos que um desafio, daqueles que trazem experiência de vida e elevam a alma, não só a própria, mas de todos que estiveram juntos na empreitada. 

O Holofote Virtual levou um papo muito legal com Guto. De maneira clara e com muita generosidade, nesta entrevista, o diretor nos conta mais detalhes do trabalho desenvolvido ao lado de uma equipe tão apaixonada quanto ele. Desde já, os parabéns aqui do blog para ele, Mestre Damasceno e aos demais envolvidos nesta iniciativa relevante para a memória do patrimônio cultural imaterial paraense.

Búfalo Bumbá, na mira de Marcelo, Parolin e Guto
Holofote Virtual: Emocionado em lançar o documentário? 

Guto Nunes: Não sei se emocionado seria a palavra que melhor definiria o que estou sentindo. 

Estou verdadeiramente iluminado pelo astral e energias positivas de mestre Damasceno, o que me deixa muito firmado na verdade em que acredito, de respeito aos mais idosos, em respeito ao patrimônio imaterial, suas memórias, saberes e fazeres tradicionais, além das constantes lutas, batalhas e negociações estabelecidas nos palcos das culturas populares. Lançar este documentário, nesse momento da minha caminhada, foi um grande desafio. 

Venho há 10 anos colaborando com muitos outros projetos, uma vez que sou arte-educador que tem como ferramenta de trabalho o vídeo, mas este foi, por enquanto, meu trabalho mais significativo por causa da pessoa envolvida, mestre Damasceno, e da função que exerci, diretor. Vejo que este trabalho é fruto do amadurecimento natural, que faz parte do processo de formação pessoal e profissional. Era um projeto antigo, mas que aconteceu no momento certo. 

Filmagens na praia, sob o sol de Salvaterra
Holofote Virtual: A primeira direção é uma experiência... 

Guto Nunes: É minha primeira direção profissional. Certa vez em uma atividade no Museu da Imagem e do Som, em São Paulo, um rapaz comentou que estava procurando um curso de direção cinematográfica. 

Na ocasião, lembro de ter respondido, em síntese, que achava que esse curso poderia até existir, tendo em vista que as pessoas oferecem de tudo hoje, mas que segundo o meu entendimento, “direção cinematográfica” e/ou “videográfica”, ou “direção” em qualquer outra área, só o tempo, o amadurecimento e a experiência são capazes de nos oferecer esse “diploma”, só eles são capazes de nos fazer assinar uma cartela dessas.

Repensando isso atualmente, vi que estava na verdade projetando minha própria história, que naquele momento trilhava em busca de uma futura realização a qual assinasse como diretor, e assim o foi, no momento em que me senti mais maduro para isso. 

Holofote Virtual: Como foi filmar no Marajó?

Guto Nunes: Filmar no Marajó foi revigorante, principalmente para toda a equipe, Marcelo Rodrigues (Dir. de Fotografia), Filipe Parolim (1º Ass. e Editor de Imagem), Léo Chermont (Som Direto e Mix de Áudio) Dani Franco (Ass. de Direção e Assessoria de Imprensa), Mauro Fernandes (Still), além de Arlindo Melo (Produtor Local). 

Lembro que ao chegarmos, recebi um forte abraço de todos da equipe e um caloroso “muito obrigado”. É claro que teve seus “perrengues” como toda produção. Eu, por exemplo, era diretor, produtor, motorista, etc, mas a experiência foi muito boa. O Marajó é um local muito rico em cultura, muito bonito, muito cheio de estórias. 

Pra mim, que cresci indo para aquele lugar, foi uma verdadeira realização, principalmente porque meu comprometimento com a cultura de mestre Damasceno é bem antiga, e não foi fácil chegar onde chegamos. Ele sempre acreditou muito em mim e eu sempre acreditei muito na cultura daquele lugar. 

Filmar no Marajó tem disso, e muito....
Holofote Virtual: E o contato direto com Mestre Damasceno?

Guto Nunes: Mestre Damasceno é verdadeiramente o encanto em pessoa, não tem como não se envolver, como não se apaixonar, e toda a equipe sentiu isso na pele. Essa facilidade de entrar “no encanto” do mestre acabou fazendo com que o trabalho se tornasse extremamente prazeroso, porque é muito bom você ajudar aquela pessoa a relembrar toda a sua história de vida, sentir novamente paixões e decepções do passado.

Durante a gravação, por exemplo, mestre Damasceno retornou à comunidade quilombola de seus familiares, a qual ele não tinha contato há 17 anos, devido à dificuldade de locomoção e falta de disponibilidade de pessoas para levá-lo até lá. É um local relativamente distante, duas horas e meia rio adentro naquele Marajó imenso. Foi uma vivência que jamais esquecerei. 
Além disso, as filmagens aconteceram paralelamente à minha pesquisa de mestrado, que tinha como objeto de pesquisa também o mestre Damasceno, intitulada “No Palco da Cultura Marajoara – Identidades e Saberes em Mestre Damasceno”. Nesta pesquisa procurei explorar a fundo suas matrizes africanas e indígenas, as quais formaram suas identidades. Essa dissertação já foi defendida e avaliada com a nota máxima. Foram dois trabalhos distintos com o mesmo objeto, um profissional, outro acadêmico, que me possibilitaram entrar profundamente em um universo que eu não conhecia tanto quanto imaginava. Foram grandes aprendizados. 

Noites de carimbó... ninguém dorme nesta equipe?
Holofote Virtual: Com um universo tão rico qual o recorte feito pelo filme? 

Guto Nunes: O filme traz um fragmento, traz um olhar de uma pessoa que cresceu envolto a um universo de representações simbólicas e curiosidades em torno de um senhor negro com práticas quilombolas e indígenas. Conta uma história de muita luta e superação diária, rica em saberes e fazeres. 

Damasceno é cego desde um acidente ocorrido quando ainda era jovem, e mesmo assim ele se destacou como figura típica da região, tendo em vista que pesca com as próprias mãos, coloca búfalo-bumbá nas ruas, joga dominó como ninguém, entre muitas outras coisas. 

O filme traz, como costumo definir, a “traje(his)tória” deste mestre, seus primeiros aprendizados, sua jornada, seu acidente e sua reviravolta para o resplendor. Traz a luta contínua e encenada nas ruas e praças de Salvaterra. Traz suas arte-manhãs diárias. 

Rodou câmera, vai som, claquete, ação!
Holofote Virtual: Quanto tempo você levou de filmagem e como foi o processo? 

Guto Nunes: Inicialmente, trabalhávamos com a possibilidade de filmar 15 dias, sendo que, ao sentirmos o ritmo de trabalho e rendimento do assunto abordado, a equipe estava previamente avisada que se necessário fosse, ficaríamos, no máximo, mais cinco dias, mas caso contrário, se percebêssemos que estávamos rendendo, poderíamos voltar com até cinco dias de antecedência. Para nossa surpresa ficamos doze dias filmando de manhã, de tarde e algumas noites. Foi bem puxado, cansativo, mas foi também muito bom e rendeu bem mais do que eu esperava. 

Durante o processo de filmagem, entramos em uma realidade muito peculiar, bem diferente da nossa, a exemplo de usar como meio de transporte para filmagem uma carroça puxada por búfalo, viajar em canoas de um local para outro, conhecer a realidade da comunidade quilombola da família do mestre, que parecem viver em outro tempo, sem esse nosso imediatismo atual. Foi muito aprendizado, sei que já falei isso outras vezes, mas realmente foi fantástico.

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