Fotos: Marivaldo Pascoal |
Acessar bens culturais e interagir socialmente é um direito de todos nem sempre exercido. Um exercício de cidadania que se torna mais raro quando o assunto é acessibilidade. São várias questões, mas na área da cultura, que espaços culturais públicos, privados ou coletivos, vocês conhecem, que tenham ações voltadas a esses públicos?
Em Belém acho que dá até para contar nos dedos... de uma só mão. Vivemos num país que não educa as pessoas para lidar com as diferenças, tão pouco faz valer as leis de acessibilidade, como deveria. Esse é um campo arenoso, mas que felizmente de vez em quando encontramos iniciativas que nos permitem acreditar ser possível ressignificar as coisas com criatividade e sim, fazer a diferença!
É o caso do “Sinfonias e Inclusão”, um projeto de baixo custo, operacionalizado via Banco da Amazônia, mas que só funciona do jeito que foi pensado graças a um arranjo produtivo relativamente simples. O apoio do Theatro da Paz, que cede espaço e já possui um corpo de funcionários para atender visitações guiadas, é fundamental. As ações do ‘Sinfonias’ que são desenvolvidas, possuem um hiato de pelo menos um mês, entre uma e outra visita, e são marcadas nos dias em que já ocorrem os ensaios da OSTP.
A instituição que atende pessoas com deficiências físicas e intelectuais dialoga com a produção do projeto, previamente, sobre as necessidades para receber os alunos e viabilizam a ida deles até o teatro. Todos saem ganhando. O resultado é que neste arranjo produtivo os alunos se familiarizam com o espaço e os funcionários do teatro, por sua vez, também ganham prática de como atender esse público. Para os músicos da orquestra também é algo novo, poderiam aproveitar mais.
O projeto iniciou em maio com participação dos alunos surdos do Instituto Fellipe Smaldone, que também trabalha com arte como ferramenta de apoio, desenvolvimento e inclusão dos deficientes auditivos. Nesta quarta-feira, 13 de junho, o Sinfonias de Inclusão recebeu a turma de musicalização da professora Rosana Furtado, que trabalha na UEE Álvares de Azevedo.
“Este ano, ainda consideramos que seja um projeto piloto, pois todos nós estamos aos poucos percebendo a melhor maneira de proceder, buscando as melhores metodologias para essas visitas, de acordo com o perfil de cada público”, explica Paloma Carvalho, que coordena o projeto com Carmem Ribas, pelo Theatro da Paz.
Visita traz motivação aos alunos cegos
Falantes, curiosos, participativos, os alunos da Unidade Educacional Especializada Álvares de Azevedo chegaram alegres e bem humorados e nos deram muitas lições. Eram esperados 20 alunos, mas apenas doze participaram. Os que não saíram da unidade junto com a professora para a visita, não chegaram.
É muito difícil, sem acompanhante, mas os que foram, aproveitaram muito. Diferente da turma do Smaldone, que tinham mais crianças, os alunos da UEE Álvares de Azevedo, era na grande maioria formada por jovens e adultos, que interagira do começo ao fim da visita, que começou no hall do teatro, quando a equipe de produção se apresenta.
Carmem Ribas, produtora do Theatro da Paz, fala sobre a programação de concertos com entrada gratuita, e como eles podem ter acesso aos ingressos. “Publicamos no site do teatro a agenda dos concertos sempre um mês antes do período. Chegando aqui vocês serão sempre muito bem recebidos pela nossa equipe”, diz Carmem Ribas. Um dos objetivos do projeto é esse, fazer com que essas pessoas que estão participando das visitas voltem como púbico nos concertos da OSTP e Amazônia Jazz Band.
Em seguida, ela os convida a tatear uma maquete feita para que eles possam perceber a arquitetura do Theatro da Paz. Eles então são conduzidos por Paloma, que vai falando um pouco da história do teatro que este ano completou 140 anos de fundação. Fala de sua construção, na Bèlle Époque Paraense, dá outros detalhes arquitetônicos, enquanto eles vão tocando cada lado da maquete. Vemos sorrisos. A visita segue adiante.
A cada passo adentro uma emoção diferente toma a ele e a todos nós - funcionários, equipe do projeto, professores da unidade e acompanhantes - cerca de 30 pessoas ao todo. A maioria dos cegos nunca havia entrado em um ambiente de teatro, muito menos conhecido a grandeza do Theatro Da Paz. De falantes na entrada, ao entrarem e tomarem seus lugares, na Varanda, eles fizeram um silêncio respeitoso e acompanharam atentos e emocionados um pouco do ensaio da OSTP.
Próximo passo foi subir as belas escadas e acessar o salão nobre, o chamado Foyer do Theatro da Paz, onde foram recepcionados por dois violinistas, Igor Amaro e Renan Cardoso, da OSTP, que fizeram uma pequena, mas significativa apresentação para aquele público, que pôde depois tatear e até tocar nos instrumentos.
“Eles estão muito emocionados, essa é uma experiência que com certeza eles vão levar para o resto da vida e está sendo de grande importância para o desenvolvimento de cada um. Eles descobrem um novo mundo com a música e gostam de programações culturais, embora muitos deles não saibam exatamente o que isso significa, justamente porque as iniciativas ainda são poucas”, disse a profesora Rosana Furtado.
Ela reforça a questão que acabou permeando a visita. “A falta visão os impede de ir sozinhos a esses espaços, por isso têm pouca vivencia cultural. Muitos dependem de um acompanhante, mesmo os que têm a técnica da bengala, se sentem inseguros”, encerrou Rosana Furtado.
Acesso aos acompanhantes e audio descrição
Estive pela segunda vez acompanhando uma ação do “Sinfonias de Inclusão”. Desta vez, antes de iniciar a visitação, pude conversar por quase 20 minutos com duas pessoas que já tiveram visão e hoje fazem parte de um grupo seleto que busca garantias de direitos dos portadores de deficiência visual.
Ednaldo da Silva, 48, perdeu a visão aos 30. Quando ele era vidente fazia teatro. “Fui um dos fundadores da encenação da Paixão de Cristo, realizada todos os anos pela Paróquia de Queluz, no bairro de Canudos”. Sério? “Sim”, me disse com um ar muito sereno e saudoso.
Na UEE Álvares de Azevedo ele é um dos alunos do curso de musicalização, e está aprendendo a tocar teclado. “A gente está aprendendo, tentando melhorar a cada dia. Tenho base de Musicografia Braille, e já ‘arranho’ o teclado. Sempre me interessei por música, mas trabalhava muito e não tinha tempo, foi só a partir do momento em que perdi a visão, que surgiu essa oportunidade”, diz Ednaldo.
Yolanda Yoko Miyke, 62, perdeu a visão aos 35. “Eu tenho filhos que estudaram na Fundação Carlos Gomes, mas não moram mais aqui e faço parte do Coral da Unidade com a professora Rosana, estou aprendendo, mas tenho dificuldades de dicção por causa de minha língua também, embora eu ache o meu português até razoável”, comenta.
Ednaldo e Yolanda fazem parte de associações que defendem os direitos do portador de deficiências. “Temos associação e conselhos de defesa de direitos de pessoas com deficiência, em nível municipal, estadual e federal, e também há pessoas se preparando para participar melhor desse tipo de grupos, porque é preciso conhecer bem as leis para atuar nessa área. As leis existem, mas ter obrigatoriedade na execução é o que ainda falta, e para isso acontecer também precisa de um pouco de boa vontade. Tem algumas pessoas pontualmente lutando por isso, mas são muito poucos ainda”, diz Yolanda.
Uma questão importante ficou muito clara nesta visitação. A figura do acompanhante, como item básico de acessibilidade nestas programações culturais e para isso eles pedem que ele também seja contemplado com a gratuidade, ou em casos de eventos gratuitos, tenha autorização para retirar dois ingressos quando há distribuição antecipada, o que facilitaria bastante as coisas para eles.
“Às vezes tem shows que a pessoa com deficiência tem gratuidade na entrada, mas para um deficiente vir a noite sozinho para um evento é meio complicado, queríamos conversar com a direção do Theatro da Paz para que haja permissão do acesso de um acompanhante conosco, gratuitamente, isso seria bastante importante. Muitos de nós não frequentamos estes ambientes porque não tem essa garantia”, reivindica Ednaldo.
Yolanda concorda e diz que já tinha ido ao Theatro da Paz algumas vezes e que é sempre muito bem recebida pelos funcionários. “Quanto a isso não tenho queixas”. Ela informa ainda que há alguns espaços já em Belém, que basta apresentar a carteirinha de deficiente ou das associações para a gratuidade do acompanhante. “Mas isso é acordo de cavalheiros, não é lei, como queremos que seja”, reforça.
Outra questão é a presença de áudio descrição nessas programações. Ter rampa, elevador apropriado, gratuidade são itens obrigatórios, nem sempre cumpridos com rigor, mas que não bastam por si, porque ainda que se tenha acesso aos locais de apresentações, é necessário que estas também sejam acessíveis para o entendimento dessa plateia.
Ednaldo lembra que há uma Lei Federal que fala da aplicação da áudio descrição em cinemas, apresentações de teatro, mas isso não acontece. “Infelizmente não há um áudio descritor em nenhuma dessas situações. Algumas TVs trazem esse programa para áudio descrever jornal, novela, mas falta fazer mais”, diz ele.
Os 12 alunos do Álvares de Azevedo, não só esperam como lutam para que essas questões e outras possam ser incluídas na pauta da cidade. No caso deles, a perda visual gera uma dificuldade de interação com o mundo exterior e a música, assim como a arte, o teatro, saber tocar um instrumento, cantar num coral são coisas que ajudam muito. “A gente perde mais o acanhamento, cria mais coragem de se lançar para fora e buscar conhecer melhor o meio ambiente e mundo exterior e isso acaba também ajudando na sua profissionalização, no relacionamento com família, com os colegas”, finaliza Yolanda.
As próximas visitas serão no segundo semestre. Na vez estão moradores de rua e idosos que vivem em casa de apoio. A iniciativa do projeto “Sinfonias de Inclusão” tem realização do Governo do Estado do Pará, por meio da Secretaria de Cultura do Estado e Academia Paraense de Música, e com apoio do Banco da Amazônia. Para maiores informações: 91 4009.8752.
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