A artista-artesã e produtora cultural Roberta Mártires, idealizadora da marca Multifário lança neste sábado, 12, a coleção “Senhora de Nós”, que reúne mantos de N. S. de Nazaré que estarão expostos em imagens moldadas em cera, fruto de uma parceria com a tradicional Fábrica de Velas São João, na Cidade Velha, em Belém, onde acontece a abertura da exposição, neste sábado, 12, pela manhã, das 9h às 12h, seguindo todas as normas prevenção à Covid-19, em relação à lotação, distanciamento e uso de máscaras.
Por Francisco Weyl
Fotos de Caroline Carvalho
Imaginários repousados dos antepassados amazônicos emergem do inconsciente e fluem pelas mãos de uma artista que tece mantos de Nossa Senhora de Nazaré, no Pará, Amazônia. Estes mantos são aplicados a velas que têm o formato da imagem da Santinha que são produzidas por uma centenária fábrica do bairro mais antigo de Belém, a Cidade Velha.
A criadora destes objetos é a produtora e artista Roberta Mártires, 44, cuja trajetória compreende coleções, desenhos, pinturas, e peças de crochê, muitas das quais, aliás, vestem dezenas de artistas regionais. Pode-se mesmo afirmar que a artista já criou uma tendência com suas peças, considerando que estas dialogam com a arte indígena panamazônica e africana, numa espécie de sincretismo rizomático visual.
Seus mantos levitam, com cores brutas e rústicas, quentes, e barrentas, encravando a raíz e a alma de cada um dos artistas panamazônicos, que, por assim dizer, modelam, com seus movimentos, em cena, nos palcos, em concertos e espetáculos teatrais. E todos estes círculos-espirais de cobras-grandes se desprendem dos imaginários de Roberta Mártires, que, agora, enreda suas linhas, e entrelaça os seus traços para um gesto que procura o infinito, de dentro de sua alma feminina.
E assim, ela concebeu uma nova coleção que chega para homenagear as mulheres em tempos de pandemia, a partir de um complexo e histórico processo de criação de dez mantos de Nossa Senhora de Nazaré, a ser apresentados com exclusividade por uma antiga fábrica de velas.
Parcerias e imersões na Cidade Velha
Formada em Turismo com estudos em artes visuais, cultura e criação, há cerca de dez anos, Roberta é proprietária da marca Multifário. A parceria com a fábrica de Velas São João, vem desde a Rede Sereia, um coletivo formado por moradores do bairro, responsável pela realização da feira “Movimenta”, na calçada da igreja da Sé, na Cidade Velha.
Foi por conta desta relação com o bairro mais antigo de Belém do Pará, que Roberta foi chamada a compor algumas santinhas para o Círio de Nazaré, que é um trabalho próprio da fábrica, que agora diversifica a sua produção, ao abraçar a cena da arte.
“Quando cheguei ali, comecei a me encantar com os trabalhos das velas”, conta a artista. Com liberdade para criar, ela propôs uma coleção, assinada, com mantos para as imagens das santinhas, ideia imediatamente aceita pela empresária Luciana Brahuna, proprietária da fábrica.
A artista diz que seu processo criativo é fenomenológico, ou seja, dá-se no momento em que ela desenvolve cada objeto ou peça, seja desenho, pintura, crochê. Conforme cria, ela descobre o que quer criar, e é a peça que diz isso para ela. “Foi a forma que eu encontrei para não me prender no começo a uma coisa que só vou descobrir no resultado final”, afirma a artista.
Quando passou a se dedicar a estes mantos de Nossa Senhora, Roberta nem tinha ideia dos caminhos a seguir, mas sentia o desejo de criar as peças, conforme desenvolvia o seu trabalho, ela identificava o que cada objeto queria dizer. Foi desta forma que a artista aplicou tecidos, fios, pontos de crochê, e cores, sobre cada um dos mantos.
Mas Roberta teve que conhecer os segredos da fabricação, e do mesmo modo, aprender as técnicas de pinturas em velas, antes de usá-las como suporte de seu trabalho para os mantos. “Faço com as velas a mesma coisa que eu faço com crochê, ou seja, dou a eles uma dimensão artística, que vai além do objeto ou de uma peça”, esclarece a artista.
Cores diferenciadas e relação com a água
Este feeling criativo de Roberta se traduz na delicada execução de cada manto, até porque as peças têm cerca de quinze centímetros de altura, com diâmetro aproximado de oito centímetros. Nos mantos, foram aplicadas misturas de tinta acrílica para alcançar cores diferenciadas, e que remetem ao barro, por estar mais relacionado a cor das águas dos rios da Amazônia, o que, segundo ela, confere também um caráter ecopolitico a coleção, já que a Região sofre diversos crimes ambientais.
A artista também usou cores como verde e marrom, o forte amarelo, e tons quentes de vermelho, que recordam as sementes paraenses. “Usei fios, redes, pontos de crochê, laços, e apliquei minhas técnicas de desenhos e pinturas com fios, que é o que faço há anos com o crochê”, esclarece Roberta.
O processo de trabalho foi para ela um aprendizado, descobrindo a força e a beleza dos materiais, e das cores, conforme os aplicava a cada um dos mantos que fazia. “Percebi neste processo que os mantos evocam o meu vínculo ancestral com os feminismos familiares, sociais, e territoriais, com o Marajó e a Amazônia, são coisas que nascem de trajetos e experiências que temos dentro de casa, na nossa terra, e nas redes cujos fios tecemos em nosso cotidiano”, diz Roberta.
Emergida neste processo criador, Roberta sentiu o quanto os mantos estavam ligados a recente perda da Mãe e ao seu próprio universo feminino. Estas memórias e estes afetos atravessados, saltaram dos mantos de Roberta, desde a avó mineira, que lhe ensinou trabalhos manuais, até a avó marajoara, que era devota de Nossa Senhora de Nazaré.
Os mantos, portanto, remeteram a artista às mulheres de sua família, e a todas as mulheres do mundo. “É muito forte fazer um manto de Nossa Senhora, mesmo para quem não é religioso, ainda mais, nestes tempos de pandemia, com muita gente perdendo mãe, perdendo filha, perdendo pessoas queridas, então, a sensação que tenho é que eu visto este manto enquanto eu o faço, e ao vesti-lo, todos ficamos protegidos e protegidas”, confessa a artista.
Multifário, crochê e o feminino
A Multifário começou com decupagem, pinturas em garrafas, tecidos, e outros materiais, expandido-se para o uso de outras técnicas e a criação de peças em crochê, como bolsas e chales. Foi então que Roberta lançou sua primeira coleção, há cerca de 5 anos, colhendo frutos, e recebendo convites para novas criações, desde então.
A artista aprendeu crochê, em Santa Isabel, quando tinha 12 anos, entretanto, quando passou do hobby para atividades mais profissionais, ela diz que, por não saber todos os pontos, começou a inventar coisas. E estas experiências a levaram ao campo da arte, cruzando crochê com desenhos e pinturas.
Ao perceber que as peças de crochê não se adaptam ao clima de uma cidade quente como Belém, a artista desenvolveu um estilo próprio, criando peças pontuadas com os dedos, que se tornam mais leves para uso, já que os pontos são mais largos, fazendo com que mantos e chales se moldem ao corpo de quem os veste.
“O crochê é sempre um trabalho de afetos e memórias, seja porque alguém te ensinou, uma avó, uma mãe, uma amiga, e esse ponto você recorda, e quando você reúne pessoas, as conversas andam a volta destas memórias, nestes fios que são tecidos pelo tempo de cada um”. É com este sentimento que a artista usa o seu principal material artístico, com o qual ela cria mundos que os transporta para os corpos das pessoas, objetos, e galerias artísticas.
Telas - Há cerca de oito anos, a artista também enveredou pelos caminhos da pintura em telas, e percebeu que o crochê acabou por migrar também para a pintura, nos desenhos em que ela apresentava traços e nós. Sua experiência em produção a levou a se tornar sócia de Marco Tuma, no espaço cultural Casa Velha, Cidade Velha, onde montou um atelier e começou a perceber que as rodas de conversas potencializavam diálogos atuais, como feminismo, negritude, periferia, resistência, Amazônia.
Prestei atenção e ouvi o que as pessoas tinham a dizer até para incorporar estes desejos e estas falas ao meu trabalho, nas coisas que eu criava, porque eu crio muito para artistas e eles estão no centro destes debates e destas transformações”. Desta urgência de sentir e compreender estes temas, Roberta organizou as rodas temáticas “Várias mulheres que fazem várias Amazônias”, e em parceria com Teo Lima, lançou “O Catador de Cacos”, inspirada no Padre Giovanni Gallo, e onde colocou pessoas do bairro para desfilar.
Cidades e redes - Além disso, Roberta foi uma das protagonistas do projeto “Cidade em frestas”, tendo ainda organizado um desfile para a coleção com temática regional, Amazona, criada para um desfile da Linhas Círculo em parceria com o Armarinho Ponto Cheio. Há cerca de dois anos, ministrou oficina de crochê no âmbito do projeto Circular Campina Cidade Velha, e, junto com Paulo Emílio, e Chico das Redes, montou a exposição “Rios e redes, uma poética sobre o tempo”, na galeria do TRE.
Serviço
Exposição / Lançamento da coleção com mantos de Nossa Senhora de Nazaré, da artista artesã Roberta Mártires. Abertura neste sábado, 12, das 9h às 12h, na Fábrica de Velas São João - Rua Dr. Assis, 52, próximo a igreja da Sé.
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