22.9.20

Um olhar clínico e terno sobre o cinema do Pará

Vamos nos despedindo da 6a edição do Amazônia Doc. Nesta quarta-feira, 23, conheceremos os vencedores, mas não sem antes  conversar com Victor Lopes, integrante do júri deste ano, mas que viu festival nascer lá em 2009. Nesta entrevista exclusiva, ele fala sobre os desafios de produzir na América Latina e nos chama atenção para as potências da cena audiovisual paraense. No currículo, 5 longas-metragens, 2 telefilmes, além de diversos curtas, campanhas publicitárias e programas para TV. Seus trabalhos no cinema somam 34 prêmios nacionais e internacionais. O filme “Serra Pelada”, porém, é ponto de partida que revela a forte ligação de Victor com o Pará. 

“Serra Pelada – A lenda da montanha do ouro” demorou mais de dez anos para ser produzido e lhe rendeu três prêmios internacionais. Foi o filme que mais o aproximou da região amazônica. O documentário conta a história da maior corrida de ouro do século XX, numa área localizada no sudeste paraense. “Foram onze anos de processo do ‘Serra’. Neste tempo estabeleci laços fortes com pessoas e também com o cinema paraense, após realização de oficinas no Estado e também trabalhos em conjunto com diretores e produtores locais”, conta o cineasta.

Entre outras produções destacam-se na carreira, "Vênus de Fogo”, ficção de média-metragem de 1992, que integrou uma campanha de prevenção a AIDS, e foi premiado no Brasil e Itália, e hoje integra o acervo do MOMA, de Nova Iorque. O curta-metragem “Bala Perdida”, de 2004, ganhou 20 premiações nacionais e internacionais, sendo pré-indicado ao Oscar naquele ano. O primeiro longa foi “Língua – vidas em português”, de 2003, um documentário sobre a língua portuguesa, exibido em 50 países e premiado no Brasil e em Portugal. Em 2012, ele dirigiu a comédia “As Aventuras de Agamenom, O Repórter”, que contou com a marca de 950 mil espectadores nas salas de exibição brasileiras. 

Na infância, vivida em Moçambique, sem acesso à TV, Victor Lopes viajava por mundos fantásticos através de filmes mudos e de faroeste, sendo um assíduo frequentador das salas de exibição. Daquele lapso de tempo em sua terra natal, à atualidade, após 30 anos morando no Brasil, muita coisa mudou. Mas a paixão pelo cinema não apenas permaneceu intacta como figura parte central de sua vida: Victor tornou-se um reconhecido diretor e roteirista, passeando por gêneros e formatos com muita propriedade. 

Holofote Virtual: Tua carreira é diversificada, mas tem forte presença do cinema documental. O que te motiva a fazer documentário? Como você escolhe as histórias dos seus filmes?

Victor Lopes: O interessante é que mesmo que minha produção documental seja expressiva, eu simplesmente adoro a ficção, inclusive minhas obras que tiveram mais repercussão foram as de ficção. O que me leva ao documentário é essa vivência do real, do contato com pessoas diversas, de lugares distintos. 

É um gênero irresistível, ele joga com o coração do mundo, muitas vezes no olho do furacão, e simplesmente eu não consigo me deter diante dessas possibilidades. Eu sou instigado pela aventura humana e se possível mesclada a um fundo histórico, e essa junção cai muito bem no gênero documentário. Os projetos em que me envolvo ou surgem de convites irrecusáveis ou então vem de algum interesse em particular meu, como é o caso dos longas “Língua” e “Serra Pelada”.

Holofote Virtual: O que te emociona em “Língua” e “Serra Pelada”?

Victor Lopes: Todos os projetos que fiz me emocionam de muitas maneiras e continuam me tocando até hoje. Meu trabalho é muito focado nas personagens, então isso me propicia uma vivência muito profunda com as pessoas que retrato em meus filmes. “Língua” é um longa que ainda é muito exibido. Me marcou muito a entrevista que fiz com o escritor José Saramago, um encontro belíssimo e que enriqueceu bastante minha pesquisa. Com “Serra Pelada” posso dizer que tenho uma relação quase mineral. Toda aquela realidade, a história de vida dos garimpeiros, na qual fiquei mergulhado por onze anos em processo de pesquisa e produção, faz parte da minha vida. 

Holofote Virtual: Você tem uma relação forte com o Pará. Você acompanha a produção cinematográfica paraense? Em sua opinião, como colaboramos com o cenário nacional de cinema?

Victor Lopes: Eu tenho, na verdade, uma relação profunda com Pará e com o audiovisual paraense, desde que comecei a pré-produção e pesquisa sobre Serra Pelada, em torno de 2005.  Eu já ministrei oficina no IAP, por exemplo, onde tive alunos que hoje fazem seus filmes, como os diretores Vitor Souza Lima e Fernando Segtowick, com as quais tive grande privilégio de conviver e espero ter somado com suas carreiras. Sou um ardoroso defensor do cinema paraense e sempre serei. O vejo como potencial não só para Brasil, como para o mundo. 

O Pará em si é um universo incrível e vemos os frutos aí. Como o filme “O reflexo do Lago”, de Segtowick, que este ano esteve no Festival Internacional de Cinema de Berlim, ele que agora está trabalhando em um projeto de ficção, que já estou ansioso para ver o resultado; a Jorane Castro, que é uma diretora incrível, com atuação política forte através da CONNE (Conexão Audiovisual Centro-Oeste, Norte e Nordeste); o Roger Elarrat, que a gente já trabalhou juntos, é uma turma muito interessante e que tem muito o que contribuir.

Holofote Virtual: Você transita pelo circuito mundial de cinema. Em sua opinião, quais são os maiores desafios e potências do cinema produzido no Brasil e na América Latina?

Victor Lopes: Estou sempre ligado nas questões do cinema latino americano, do qual faço parte com muita honra. Interessante perceber que os desafios e potências permanecem os mesmos através dos tempos. Como desafio, destaco a necessidade de criar uma indústria local mais consolidada. No Brasil, geramos para a economia entorno de 25 bilhões de reais e mais de 300 mil empregos. Ou seja, o audiovisual é parte importante da cultura do nosso país. 

A gente não pode ficar vivendo de mercados externos quando a gente tem tantas coisas pra viver aqui dentro do nosso território. Mesmo agora, com a popularização dos streamings, por exemplo, temos que ir além de catálogos de filmes estrangeiros e ter espaços voltados para a produção nacional, que é tão rica. Além disso, encaramos desafios que são  gerados com as próprias politicas de cinema, muito deficientes em diversos aspectos. Então, para fazer cinema, temos que passar por cima de muita coisa, e daí surge nossa potência. Essa nossa sede de continuar criando histórias e reinventando o cinema é nosso forte.

Holofote Virtual: Sobre o Amazônia Doc. Este ano você integrou o júri da mostra principal, mas já estavas presente lá no início do projeto. Como você enxerga a evolução do festival?

Victor Lopes: O Amazônia doc é uma iniciativa essencial, por que fomenta produção local e uma identidade audiovisual muito direta com a floresta em si.  Desde que fui curador lá na primeira versão, a convite de Zienhe Castro (diretora geral do Festival), fiquei honrado.  Essa noção da Pan-Amazonia e unir os países em torno da floresta e esse chamado vir de Belém é algo vital e raro, por isso precioso. Fico tão feliz com a continuidade do festival e essa permanência que ele conseguiu alcançar. 

Quando a gente lembra das duas primeiras edições, em que juntamos produtores de cinema que tão poucas vezes puderam se unir, me vem à cabeça lindas memórias. Encontros com cineastas como Humberto Ríos (Argentina), Marta Rodríguez (Colômbia), Silvio Tendler (Brasil)... Esse espaço de encontro, da gente ter uma reflexão do cinema produzido a partir da cultura amazônica é fundamental. Torço para que esta permanência se confirme a cada edição, pois é um espaço de reflexão sobre a Amazônia que o mundo não pode perder.

Holofote Virtual: Tens trabalhado em algum projeto? Conta pra gente o que vem por aí.

Victor Lopes: Estou trabalhando bastante, mesmo nesse momento delicado para o cinema exatamente quando vínhamos numa crescente, afinal, nunca tínhamos produzido tanto como nas ultimas duas décadas. Mas, sei que nada nos deterá. Então tenho me dedicado a alguns projetos. Um não posso revelar muitos detalhes ainda, mas adianto que é um documentário musical com elementos de ficção científica, sobre um certo Brasil e um certo mundo atemporal. Aguardem! (risos).

Em paralelo, estou preparando um filme sobre as viagens do Mário de Andrade na época em que escreveu “Macunaíma”. É uma obra baseada em seu livro “O Turista aprendiz”, em que ele conta uma experiência de viagem dele na década de 20, uma para Amazônia e outra para o Nordeste brasileiro, trazem essa descoberta do Brasil profundo de Mário. 

Tem também uma ficção que está em processo, feita a partir de um prêmio da Ancine, que é ambientada no Pará, inclusive. É uma história que me leva de volta à Serra Pelada, falando deste lugar nos dias de hoje, uma produção que mistura mineração, tecnobrega, disputas de terra. Um drama social com ação no meio. É um projeto instigante e que me une mais uma vez a este estado, já indissociável de minha história.

Serviço

O 6º Amazônia Doc – Festival Pan Amazônico de Cinema encerra nesta quarta-feira, 23, com o anúncio dos filmes vencedores deste ano em três mostras competitivas. Realização:  Instituto Culta da Amazônia; Co-realizacão: Instituto Márcio Tuma; Patrocínio: Equatorial Energia, por meio da Lei Semear de Incentivo à Cultura - Fundação Cultural do Pará - Governo do Pará. A produção é da ZFilmes; e apoio cultural do Sebrae e da Rede Cultura de Comunicação; Ufpa - Curso de Cinema e Estrela do Norte - Elo Company. Mais informações: www.amazoniadoc.com.br

Holofote Virtual

  • Entrevista: Luiza Soares 
  • Edição: Luciana Medeiros

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